por Marcella Fernandes para o HuffPost Brasil
Brasília – Primeira juíza negra do País e secretária de Igualdade Racial do governo interino de Michel Temer, Luislinda Valois quer aumentar a punição para o crime de injúria racial, implantar delegacias de crimes de raça em todos os estados e federalizar homicídios contra jovens.
O Código Penal prevê multa e reclusão de um a três anos para injúria referentes à raça, cor, etnia ou religião e prescreve em oito anos. Já a Lei 7.716/89, que trata de crime de racismo, estabelece reclusão de até cinco anos e, de acordo com ela, o ato não prescreve.
Valois admitiu que a perda status da pasta de Direitos Humanos prejudica a atuação, mas não vê impedimentos para avanços sociais no governo do peemedebista. Filiada ao PSDB, ela também rebateu críticas por integrar o partido.
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HuffPost Brasil: Qual a avaliação da senhora como juíza e integrante do Movimento Negro sobre o combate ao racismo. O que falta avançar no âmbito legal?
Luislinda Valois: Nós temos uma legislação muito boa. O que falta é a punição. Mas a culpa não é do Judiciário. Eu tenho que salientar. É porque o volume de serviço é muito grande e também o Judiciário não é o dono da chave do cofre. Ele vive de repasses. Então até para implementar seus projetos, programas de celeridade, ele tem que aguardar.
HB: Um dos fatores para impunidade são os casos em que o crime é classificado equivocadamente com injúria racial e não como racismo, resultando em uma punição mais leve ou prescrição. Como evitar que isso continue?
LV: Uma das minhas metas, se eu ainda estiver aqui no próximo ano, é levar essa situação ao Congresso Nacional e fazer um pedido para que se faça com que a injúria racial também seja punida com mais celeridade. Talvez nem tanto quanto o racismo, mas que não se puna somente com prestação de serviço, distribuição de cesta básica. Eu quero privação da liberdade mesmo, até para o cidadão ter um tempo maior para refletir sobre seus atos e não mais praticá-los.
HB: Já tem uma proposta mais específica do que mudaria na pena?
LV: Ainda não. Estou para retornar ao Congresso para conversar com os parlamentares das duas Casas para ver o que podemos elaborar nesse sentido. É que este ano está sendo atípico, então não quero levar mais um problema para os parlamentares.
HB: Em junho, a senhora foi ao Senado pedir celeridade na apreciação de algumas propostas. Qual é a prioridade?
LV: Tem uma situação que estamos acompanhando de perto e criando mecanismos na Seppir em nível nacional para ver o que podemos fazer, que é o homicídio do jovem negro. (…) Estou fazendo uma comparação com o que se fez com os judeus na Segunda Guerra Mundial com o que se está fazendo em termos de homicídio agora com o povo negro, principalmente o jovem, que vai de 16 e 29 anos. Geralmente analfabetos, filhos de pais analfabetos, moram na periferia, desempregados, revoltados porque não se veem incluídos em nenhum contexto de política pública, de espaço público.
HB: O que será modificado nas políticas públicas voltadas para enfrentamento de homicídios de jovens negros?
LV: Levei a situação ao procurador-geral da República [Rodrigo Janot]. Conversamos bastante e estou imbuída de criar em todos estados da Federação delegacias especializadas para apreciação desses crimes [de discriminação racial]. Em relação aos crimes da juventude, eu pedi ao procurador-geral que eles sejam federalizados, para que tenham uma celeridade maior.
HB: E em relação à maioridade penal, em discussão na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado?
LV: Sou totalmente contra.
HB: O governo Temer já tem um posicionamento sobre esse tema?
LV: Que eu saiba não (…) Mas já conversei muito no Senado e minhas ponderações foram bem acolhidas.
HB: Na Olimpíada, após a judoca Rafaela Silva ganhar o primeiro ouro do Brasil, o jornalista André Forastieri afirmou que "medalha de ouro para uma negra favelada ajuda as negras faveladas em exatamente nada". Qual a opinião da senhora?
LV: Eu penso diferente. Esse sucesso, esse êxito da Rafaela engrandece não é somente a comunidade da Cidade de Deus. Engrandece o país como um todo. Não somente a negritude brasileira. Todo brasileiro tem um ganho muito forte com esse resultado. Uma medalha dessa depois de tanto sofrimento, tanta luta, discriminação, rejeição, ela chegar a esse ponto, o Brasil está devendo muito a ela. Porque ela chegou lá praticamente sozinha. O Brasil lhe ajudou muito pouco.
HB: Foi importante por causa da representatividade?
LV: Não tenho a menor dúvida. É um estímulo muito grande para todos, homens e mulheres negros, pretos, pobres da periferia, como eu classifico a mim e a meu povo preto.
HB: O governo interino de Michel Temer foi criticado pela falta de representatividade de mulheres e de negros entre os ministros. O que a senhora acha desse cenário?
LV: O Brasil é um país eminentemente branco, de homens ricos. Não foi grande novidade o que aconteceu agora. No governo anterior eram 39 ministérios e nós tínhamos quantos negros? Acho que dois. Então proporcionalmente está equilibrado, mas negativamente. Como a situação política no momento [da posse de Temer] estava de euforia, chamou muita atenção, mas inclusive nos tribunais do Brasil não se tem hábito de ter pretos em espaço de poder. Se encontram muito negros e negras servindo cafezinho, lavando o banheiro, atendendo os magistrados. O Brasil, em termos de negros talentosos ocupando espaços de poder, deixa muito a desejar. É cota de um só pra dizer que tem um negro representando. Mas a situação precisa se modificar porque nós temos muitos negros de talentos, exitosos, mas vivem no anonimato porque não se dá oportunidade desse negros realmente demonstrarem o seu potencial.
HB: Uma norma do Ministério do Planejamento publicada no início de agosto estabeleceu que candidatos negros terão de passar por uma comissãopara concorrerem a vagas pelo sistema de cotas nos concursos públicos. A senhora concorda com essa forma de definir a raça de uma pessoa?
LV: Estamos discutindo ainda com o (ministério) do Planejamento (o que fazer) porque essa instrução foi elaborada muito acertadamente. A intenção do Ministério Público deve ter sido a melhor possível, mas houve o que eu chamo juridicamente de supressão de instância. Ou seja, a Seppir não foi chamada para opinar.
HB: Atrapalha o trabalho da Seppir e das outras secretarias ligadas a direitos humanos o fato de ter perdido o status de ministério?
LV: Dificulta um pouco mais porque tolhe a liberdade de ação. Mas não impede de trabalharmos, de maneira nenhuma.
HB: Os movimentos ligados a direitos humanos criticam a gestão Temer por não priorizar a área e pela chance de retrocessos. A senhora tem um histórico de luta no Movimento Negro. Por que aceitou o convite para integrar o governo?
LV: No início eu relutei muito porque tinha minhas atividades pessoais. (…) Mas decidi enfrentar esse desafio. A causa negra me comove muito. Não sei se é porque sou negra, preta, pobre, de família miserável, candomblecista, divorciada. Entrei no Tribunal de Justiça da Bahia e, Deus sabe como, pra chegar a desembargadora. Eu não sei nem como e eu tenho lágrimas até hoje. Acho que por isso tenho uma obrigação e missão de fazer alguma coisa para que muitos negros não passem pelo que eu passei. É muito sofrimento.
HB: Algumas pessoas criticam a senhora por ser filiada ao PSDB, um partido tachado de direita, e defender causas ligadas ao pensamento de esquerda. Há uma contradição?
LV: Eu vejo essa colocações como bobas. Por que o negro só poder estar em determinados espaços? Se o PSDB é espaço de homem e branco, por que não uma mulher negra chegar lá? Eu sou altamente respeitada. Respeito a todos. As minhas ideias quando as levo para discussão geralmente são acolhidas. Eu faço parte da executiva nacional. Então não vejo o porquê dessa crítica. Eu nunca fui nem de esquerda, nem de direita.