22/08/2023
Brasil

Elke Maravilha nos ensina a ter coragem

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Na madrugada do último dia 16, faleceu Elke Georgievna Grunnupp, mais conhecida como Elke Maravilha. Imigrante de origem russa, nascida em 1945, chegou ao Brasil com seis anos de idade. Filha de uma alemã e um russo que se conheceram em razão da guerra e da guerra fugiram em direção ao Brasil.

Difícil classificar Elke que, ao longo de sua vida, foi bancária, bibliotecária, secretária trilíngue, professora de línguas, estudante de medicina, filosofia e letras, jurada de auditório, cantora, atriz, entrevistadora. Se tornou conhecida nacionalmente na década de 60 como modelo e manequim. Sua marca registrada eram os cabelos, roupas e maquiagem sempre exuberantes.

Não era uma personagem, mas sim a personificação de sua própria pessoa. Era a mesma, com ou sem maquiagem. Foi transgressora, libertadora.

Com uma fala leve, geralmente doce e de forte sotaque mineiro, Elke dizia verdades, rompia preconceitos e apresentava um mundo que não estávamos – e não estamos – acostumados a ver.

Nunca foi fácil ser Elke. Aos 18 anos, ao ver que somente vestia preto, provocou uma revolução em si. Rasgou roupas, abusou da maquiagem e saiu às ruas. Apanhou naquele dia, tendo de ir parar no hospital Miguel Couto. Também chegou a receber uma cuspida na cara em plena Ipanema – bairro que já foi considerado berço da ousadia carioca. "É difícil ser a primeira, ousar" disse em uma entrevista à IstoÉ.

A origem mineira é outro ponto curioso em sua história de vida; afinal, como uma figura transgressora e expansiva pode sair de Minas Gerais? Em uma conversa com o escritor Carlos Drummond de Andrade, em Copacabana, comenta que o próprio poeta não conseguia entender como uma alma tão diferente da mineira pode ter vivido no mesmo lugar em que ele nasceu e foi criado. Ao saber que Elke havia nascido na Rússia, compreendeu que o "culpado" era o DNA.

De modelo de passarela querida por Zuzu Angel à jurada do programa do Chacrinha… Mais uma prova de que rótulos e estereótipos não faziam parte da essência de Elke. Ao aceitar o convite em 1972 para participar do programa, Elke somente conhecia o "Velho Guerreiro" de fotos e artigos, jamais tinha assistido a um programa.

Aceitou o desafio e, no fim de semana seguinte, já estava compondo a mesa ao lado de Pedro de Lara – outro transgressor. O sucesso foi imediato, e a parceria durou até 1988, ano do falecimento do apresentador.

Do carinho por Chacrinha às reservas por Silvio Santos… Chegou ao SBT para integrar o time de jurados do Show de Calouros. De jurada, ganhou em 1993 um talk show exibido nas tardes da emissora. Começou dando 5, 6 pontos de audiência e chegou a dar 15 pontos no final. Teve o programa descontinuado em 1996 sem saber de fato o real motivo do cancelamento. Em seu último programa, Elke exibiu um casamento gay.

A vida amorosa também foi intensa. Ao todo foram 8 casamentos, entre os quais, somente um Elke não manteve mais contato após a separação – era psicopata, dizia. Não teve filhos. Dizia não ser capaz de criar um filho. Sua negação à maternidade era tão segura que chegou a cometer três abortos. Não queria âncoras.

Não foi mãe de ninguém, mas teve vários afilhados. Elke foi madrinha dos homossexuais, das prostitutas, dos garis, dos portadores de hanseníase e dos presidiários. Com eles partilhou suas bandeiras, trouxe visibilidade, mas mais do que isso, apresentou-os como humanos que realmente são.

Definia-se como trágica, jamais como dramática. Nunca utilizou de acontecimentos em sua vida para se fazer de vítima. Sua autenticidade a levou presa por seis dias em plena ditadura. Foi considerada subversiva não pelas roupas que usava, pela maquiagem que vestia ou pelo que falava. Foi presa por rasgar um cartaz que continha a imagem de Stuart Angel, filho de Zuzu, já falecido. Foram seis dias, nada como ela mesmo dizia se comparado aos seis anos que o pai ficou preso na Sibéria. Perdeu a nacionalidade brasileira. Se tornou apátrida.

Em suas entrevistas – que não eram raras -, sempre tentava transmitir uma mensagem. Usava seus exemplos, suas histórias e as passagens com seu pai para ilustrar a sua visão de indivíduo e de mundo. Tudo era Elke, e dessa forma ela se definia indefinidamente. Essa era a graça da vida em sua visão.

Jamais teve medo da velhice e tampouco da morte. Viveu intensamente cada fase da sua vida e, talvez por isso, nunca se considerou saudosista.

Regida sob o signo de peixes – se dizia já nascida velha -, aprendeu a valorizar cada perda e cada ganho adquirido com o passar da idade.

"Se a gente não quebrar estruturas enrijecidas, quebrar velhas estruturas, doa na gente, doa a quem doer, a gente não tem possibilidades de novas possibilidades. Nem dentro nem fora da gente. Ficar velho é muito, ficar antigo é problema"- trecho extraído de documentário realizado em 2007

O fato que é perdemos não uma artista, mas um ser humano da melhor qualidade. De transgressor no passado a evoluído nos dias de hoje, Elke foi embora sem que compreendêssemos metade de sua alma.

O pouco que conseguimos absorver deixou marcas. Sortudos foram os que se permitiram a ouvir Elke: alguém à frente de seu tempo, até hoje.

*Fernando Dibb é radialista, jornalista e mestre em Televisão

Cristina Esteche

Jornalista

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