22/08/2023


Brasil Geral

Generalizar também não dá. Exemplos existem

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Por Maria Lima, especial para O Globo

Paracatu – No lugar de rostos cobertos e facões brandindo ameaças de decapitações dos companheiros em rebeliões pelo país, em uma cadeia de Paracatu (MG), a 200 quilômetros de Brasília, os 114 presos manuseiam agulhas de crochê para fazer arte e estiletes para construir capelinhas ou abajours de madeira. Sem registro de rebelião ou motim nos 10 anos de funcionamento, o novo modelo de gestão prisional tem conseguido cerca de 60% de recuperação dos presos com penas de até 38 anos por homicídio, estupro, tráfico, roubo, estelionato ou associação criminosa. Baseada em três pilares – trabalho, religião e disciplina – na APAC Paracatu (Associação de Proteção e Assistência a Condenados), em um prédio moderno construído e mantido pelos próprios presos, sem policiais armados, os detentos são responsáveis pela segurança dos outros detentos e trabalham para garantir renda para ajudar a família ou cobrir pequenas despesas na prisão.

Lá, livres das trancas nas celas e dormitórios, independentemente da pena ou da barbaridade do crime cometido, os presos são chamados de “recuperandos”. Enquanto no sistema prisional convencional onde a situação é caótica cada preso custa ao estado cerca de R$ 4.500 por mês, um convênio com a Secretaria estadual de Defesa Social destina a cada preso da APAC apenas R$ 915.

Sem qualquer chance de ociosidade, trabalham de sol a sol nas oficinas de artesanato, padaria, cozinha, serralheria, marcenaria e estudam, fazem cursos profissionalizantes e, no horário de descanso, se juntam na quadra de esportes para tricotar, literalmente, e trocar ideias sobre a confecção de delicados caminhos de mesa, chapeuzinhos de bebê, tapetes e galinhas para guardar ovos na cozinha. Todos foram transferidos de presídios tradicionais onde já cumpriram parte da pena e tinham bom comportamento, um dos pré-requisitos. A autorização de ingresso é feita pelo juiz local, após pedido por escrito do detento, mediante assinatura de um termo em que se comprometem a seguir rígidas normas de disciplina.

"Os presos chegam aqui como bichos, de cabeça baixa e as mãos para trás. No portão a gente tira as algemas, a roupa laranja, levanta o queixo dele e fala: olha reto! Ele anda uma semana emborcado e olhando pra baixo, mas aos poucos vai voltando a andar como gente! Borracha e paulada na cabeça não deu conta de resolver. Esse método é um novo pacto", diz o diretor da APAC, Eurípedes Tobias.

A instituição prisional funciona em parceria com a Pastoral Carcerária e um grande número de voluntários de Paracatu. Há 14 funcionários contratados e os recuperandos se revezam em múltiplas tarefas e abatem, com o trabalho e o estudo, tempo de duração da pena. O prédio, com higiene e pintura impecáveis, foi construído em um terreno doado pela Igreja Católica. O estado repassou R$1,1 milhão, e a sociedade paracatuense doou outros R$700 mil, num total de R$1,8 milhão para um prédio que mais parece um hotel, com dois pavimentos, auditórios e consultório odontológico. Um sem número de recuperandos exibe sorrisos metálicos pelos aparelhos nos dentes.

"Trabalhamos a autoestima e a identidade dos recuperandos que vem para cá. Tinha gente que não tinha dente e colocou", diz a encarregada administrativa Vanessa Martins Pinheiro.

Com aparência franzina – pesa cerca de 40 quilos – Vanessa exerce grande poder de disciplina sobre os presos e, apesar da aparência frágil, exerce tarefas masculinas, como a escolta de presos a consultas e audiências fora da cadeia.

"Os brabão da cadeia que chegam aqui, com a força da cabeça, a Vanessa faz ajoelhar e chorar , mostrando a realidade", brinca o diretor Eurípedes Tobias.

O ex-recuperando Márcio Felipe, que cumpriu pena de cinco anos por assalto, hoje é um dos cinco ex-presos integrados ao quadro de funcionários, com carteira assinada, que trabalham como inspetores de segurança e supervisores de oficinas.

À noite, a segurança é feita por seu Divino, inspetor de segurança , um velhinho de 63 anos cuja obesidade o impediria de correr atrás de algum eventual fugitivo.

"Imagina eu, um velho de 63 anos, cuidando de 114 presos? Mas eu me sinto mais seguro aqui dentro do que lá fora", diz seu Divino.

Os corredores do prédio com fachada moderna – mais parece um hotel – são impecáveis e as paredes pintadas de azul e branco tem a tinta renovada pelos presos a cada ano. Em cada cela ou dormitório, que fica com os cadeados e grades sempre abertos, cabem nove detentos que cuidam da limpeza e organização. Camas bem arrumadas, tapetinho na entrada e debaixo da pia. Para estimular a organização, a cela mais organizada do mês ganha um troféu. E a mais bagunçada ganha um porquinho preto na entrada.

Um dos mestres do crochê da prisão, Talison Melo Monteiro organiza, com a irmã, a construção de um site para vender as peças de artesanato em linha e madeira que produzem. Vai se chamar “Artesãos da APAC Paracatu”. Apesar das brincadeiras de que é alvo, Talison não acredita que sua masculinidade vai ser afetada por fazer crochê , uma atividade considerada feminina.

"O artesanato que você faz não é o que vai definir a pessoa. A crise está braba, temos que vender o que produzimos para ajudar a família", diz Talisson.

O terreno, doado pela Igreja Católica local, tem uma horta, centro de artesanato, oficina onde os presos constroem cadeiras escolares, umas biblioteca e escola para cursos profissionalizantes. Toda última sexta-feira do mês, os detentos organizam uma festa para comemorar os aniversariantes, com participação de familiares.

"Na construção do prédio só compramos as telhas, o resto tudo foi produzido aqui, das grades aos móveis. Os que cumpriram pena aqui, ajudaram a construir o prédio e trabalham nas nossas oficinas oferecendo serviços para a comunidade. Eles saíram como eletricistas, serralheiros, pintores ou encanadores. Não oferecem mais risco para a sociedade. Depois que foi criada a APAC, Paracatu nunca mais teve rebelião no presídio lá de cima, porque os presos tem expectativa de vir para cá e melhoram o comportamento lá também", diz Eurípedes Tobias.

Os presos contam com uma televisão no refeitório e na hora do almoço, assistem ao noticiário das rebeliões pelo país afora. As imagens de cabeças decapitadas e corpos amontoados no pátio são usadas na laboterapia, que o gerente administrativo Silas Porfírio e Vanesa Pinheiro chamam de “terapia de realidade”.

"Mostramos o horror nas prisões como o caminho que eles não devem trilhar. Eles chegam aqui achando normais os crimes que cometeram lá fora. Nosso papel é desconstruir essa concepção e mostrar que dependendo do caminho que escolherem eles podem ser vítimas das atrocidades e também morrer", diz Silas.

Na APAC, os recuperandos também contam os dias para concluir a pena, mas mesmo com a restrição de liberdade, concordam que voltar para o presídio seria sair do céu para ir ao inferno. Com 25 anos, Danilo Pereira foi condenado a 27 anos por assassinato e outros crimes. Já cumpriu cinco anos e, com a progressão, em nove anos sai do regime fechado e vai para o semiaberto. Ele conta que desde os 16 anos vive o inferno do mundo do crime. Ele passou dois anos na Febem. Saiu aos 18 e aos 19 voltou para a cadeia. Hoje é professor em um curso que se chama “viagem do presidiário”.

"Lá no presídio, eu era humilhado, e aqui sou respeitado e estou me recuperando. Estou nessa vida desde os 16. Entrei ladrão e saí bandido na Febem, que é uma faculdade do crime", diz Danilo.

O brasiliense Wesley Pereira matou três pessoas e tem a maior pena entre os recuperandos: 38 anos. Já cumpriu pena em presídios convencionais de Goiânia, Unaí e Paracatu. Chegou há dois meses na APAC e ainda está se adaptando as duras regras de disciplina.

"O que me tirava fora de mim era a droga. Aqui trabalho e estudo. Sou quase um analfabeto, mas já estou na terceira série e quero terminar aqui os estudos. Se der tudo certo, em 2024 eu passo para o semiaberto", diz Wesley Pereira.

Dono de uma das celas mais organizadas – se você tropeça no tapete ele vai atrás e arruma – Murilo Neiva é o melhor exemplo da recuperação na APAC. Condenado a 21 anos por latrocínio, ele cursa o terceiro período de Direito na Faculdade Atenas. A faculdade é particular, e ele chegou a ser selecionado pelo FIES. Mas sua família preferiu pagar as mensalidades para ele “sair sem dever nada”.

"Na faculdade, eu apresentei um trabalho sobre o índice de reincidência e recuperação na APAC e no sistema prisional comum. O que a APAC recupera, o comum reincide. No final, eu me expus para a turma e disse que era recluso. Não senti preconceito e fui muito bem aceito", conta Murilo Neiva.

Outra estória bem sucedida é a do ex-recuperando Daniel Luiz da Silva. Condenado a 37 anos em 27 processos, ele hoje é coordenador da Fraternidade Brasileira de Assistência a Condenados, um órgão que dá consultoria as 50 APACs existentes no país e participou de um encontro em Rimini, na Ítalia, onde levou a experiência brasileira, depois copiada com a construção de duas unidades APACs na cidade italiana.

 

 

Cristina Esteche

Jornalista

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