22/08/2023
Guarapuava

Lázaro de Jesus

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Conheci Lázaro no mesmo dia em que cheguei aqui. Já faz, pelos menos, uns vinte anos. Tanto eu quanto ele, éramos bem mais jovens. Noto que apesar do tempo, para ele, quase nada mudou. Mantém quase tudo de si desde o primeiro dia em que o vi. Cheguei de madrugada. Lázaro estava na rodoviária…

Com seu saco sujo nas costas, ele perambulava pelo saguão. Seu olhar não era triste, mas percebi algo diferente. Preocupação?! Ele sorriu para mim. Sorri de volta. Nada me pediu. Abri a carteira e lhe ofereci algum dinheiro. “Não vai te fazer falta?”, me perguntou com candura. Aquelas foram as primeiras das poucas palavras que ouvi dele.

Ante minha negativa, ele me sorriu em agradecimento. Eu pegaria um táxi que me levaria à nova casa. Vi quando ele entrou numa lanchonete na rodoviária. Observei que usou o dinheiro que eu lhe dera para comprar comida. Acompanhei quando o vi saindo com o lanche na mão. Um cão magrinho estava do lado de fora e lhe sorriu com a cauda…

Senti calafrios quando o vi partindo o sanduíche ao meio. Dividiu com seu amigo canino o quase nada que tinha. “Ah! Este é o Lázaro! Ele ama cachorros”, falou-me o taxista. Foi naquele momento que fiquei sabendo seu nome. Desde então, aquela lembrança começou a me perseguir. Lázaro passou a ser minha referência de bondade, de luz.

Lázaro permaneceu em seu mundo e eu no meu. Tempos depois, ele desapareceu da rodoviária. Fiquei preocupado. Outras pessoas também questionaram o sumiço. Lázaro, que sempre foi frágil, adoecera por causa do frio. Foi resgatado por voluntários e levado ao hospital. Seu cão o acompanhou. Ficou do lado de fora.

Teve pneumonia e quase morreu. Recusou um abrigo. “Eles não me deixam levar o cachorro”, argumentou. Fiz compras de cobertores e de roupas e saí à sua procura. “Não tenho onde guardar tanta coisa. Possuo o suficiente”, expressou. Levei de volta o que havia comprado. Dei-lhe algum dinheiro. O cão fora alimentado pelas cozinheiras do hospital. Estava mais gordo…

O hiato do tempo nos faz esquecer muitas coisas. Deixei de pensar tanto em Lázaro, pois tinha que cuidar de mim. Muita coisa mudou, desde então. Para Lázaro, não. Em uma noite chuvosa, eu o avistei num ponto de ônibus. Havia um cão do lado, mas não era o mesmo de antes. Lázaro acariciava a cabeça do animal e sorria.

Parei e perguntei se estava tudo bem. Afirmou que sim com um gesto. “Quer que te leve para algum lugar?”, indaguei. “Aqui é algum lugar. Estou onde quero estar”, redarguiu. A chuva engrossou. O cão latiu. Eu fui embora. A imagem de Lázaro voltou a me perseguir. Não dormi aquela noite. A chuva e o frio deixaram a cidade triste, menos Lázaro, que sorria…

Depois do inverno, veio um calor escaldante. Eu saía do trabalho quando avistei Lázaro sentado numa escadaria. Estava descalço. Havia uma grande ferida em seu pé. Corri até onde ele estava e o cumprimentei. Ele sorriu. Seu rosto continuava o mesmo, porém, contraído pela dor. Como a amainar o sofrimento, o cão lambia sua ferida…

Telefonei para uma ambulância particular. Chegaram rápido. Eles sempre chegam quando se paga. Lázaro recusou a ajuda. “Eu estou muito bem! Deixe!”, disse. “Você precisa cuidar desta ferida. Eu cuido do teu cão”, prometi. “Se você cuidar dele, eu vou”, aceitou e percebi que seu rosto relaxou. Levaram Lázaro. Fui até o hospital. Paguei adiantado.

Ao preencher a ficha, um problema. Ele não tinha documentos. “Preciso do teu nome completo. Não tem documentos?”, perguntei. “Sou Lázaro de Jesus. Não tenho documentos”, respondeu. Um enfermeiro o levou. Eu e o cão, ficamos. O saco com seus pertences eu carreguei no carro. Fui para casa. Lázaro receberia tratamento. Em mim, um vazio…

Ele não podia receber visitas. Passou por cirurgia. Remédios fortes. “Precisa ficar isolado. Perigo de contágio”; avisaram-me na recepção. Lázaro tinha lepra. Era curável. Levei o cão ao veterinário. Tudo certo com o animal. Recebeu vacinas. Era meu amigo também. Num domingo, meses depois, ouço a campainha soar. Acordei do sobressalto. Um homem no portão.

Vesti-me rapidamente. Fui atender. Era Lázaro. Cabelos raspados. Já não tão magro, ele sorria. Olhei por várias vezes para aquele rosto. Ele estava muito melhor do que antes. Estava em paz. “Vim buscar meu cachorro. Tenho que ir”, avisou. O cão chegou correndo. Saltou alegre nos braços do dono. “Quero minhas coisas também”, pediu. Fui buscar o saco que nunca abri. Lazaro estava bem. Perguntei sobre a ferida, falou que tinha sarado. Ele não dava margem às perguntas. Não insisti. De saco nas costas, ele me olhou nos olhos. “Obrigado por ter me salvado”, falou e sorriu.

Minha garganta travou. A voz não saiu. “Foi você quem me salvou, amigo!”, pensei sem poder dizer. “Adeus! Procure se cuidar também! Eu vou embora”, reforçou. Estendi-lhe a mão. Ele retribuiu. Eu continuava mudo. Lázaro se foi com o cão alegre e o saco nas costas. Estava curado. Nunca mais o vi. Lázaro me salvou…

(*) Jossan Karsten é jornalista, escritor e poeta. Mora em Guarapuava e é a simplicidade em pessoa. Quando escreve, desafia, provoca, acalma, questiona e responde.

Cristina Esteche

Jornalista

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