“O orgulho é a fonte de todas as fraquezas, por que é a fonte de todos os vícios”. (Santo Agostinho)
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Eis que chegamos ao terceiro Mistério (Lc II, 1-21), o nascimento Nosso Senhor Jesus Cristo. O Verbo Divino se fez carne para redenção de nossas faltas (que não são poucas, diga-se de passagem).
Quando medito, silenciosamente – sobre esse mistério gozoso – confesso que meus olhos marejam em meio às lágrimas e lhes digo a razão disso tintim por tintim.
Primeiramente, me permitam contar uma breve história. Certa feita um grande amigo, e mestre, o filósofo Luiz Gonzaga de Carvalho Neto, relatou-me algo que ocorreu numa Santa Missa que fora presidida por um Santo homem, o falecido Padre Carmelita. Logo no início da Celebração comunicou a todos que estava acomodado na sacristia um casal de retirantes (ele na época morava na grande São Paulo). A esposa estava grávida e ele solicitava, encarecidamente, que alguém pudesse abrigá-los apenas por uma noite, pois, no dia seguinte, o casal já teria um destino apropriado. Ninguém se manifestou.
Seguiu-se a Celebração e antes de findá-la, o padre mais uma vez perguntou se alguém poderia dar abrigo ao casal. E, em meio ao silêncio, um modesto senhor que residia em uma simplória pensão manifestou-se e disse que cederia o seu quartinho e sua cama para o casal e que ele de bom grato dormiria em outro cantinho da hospedaria.
Detalhe: essa Santa Missa era de Natal. Quando o senhor se manifestou, o padre convidou o casal para entrar e disse a todos e eu, aqui, nestas parvas linhas, repito: esse casal era São José e Santa Maria e o menino em seu ventre, Nosso Senhor. Mesmo passado praticamente pouco mais dois mil anos Jesus Cristo ainda nasceria no lugar mais humilde e seria desprezado por todos devido à dureza de nossos corações.
Por isso que minha alma chora diante desse mistério. Deus se fez presente entre os homens e nós, de nossa parte, continuamos a virar as costas para Ele. Mesmo com o passar de todas essas centúrias continuamos a agir e a viver como sepulcros caiados.
A verdade está diante de nossos olhos assaltando nossas vistas e o que fazemos? Baixamos a cabeça, lamentamos, e esperamos que alguém seja realmente Cristão, mas não diante de nossa vista, é claro, para que não nos sintamos culpados por nossa vileza.
Podemos até, em um primeiro momento, agir de modo similar aos pastores que recebendo o anúncio do anjo rapidamente foram junto à manjedoura onde estava o Menino. Porém, como os pastores, não perseveramos em nossa luta espiritual.
No momento de júbilo, lá estavam, presentes, mas depois, para onde foram? Similar a todos nós que nos fazemos presentes nos momentos de festejo, de alegria e que, logo em seguida, sumimos e nos retiramos para o interior de nossa fétida alcova existencial.
Além desse ponto, há outro que julgo ser de grande relevância sobre o Nascimento de Nosso Senhor que é o seu significado análogo com a alegoria da Caverna do filósofo grego Platão (A República, livro VII). Na referida alegoria um dos agonizantes sai da caverna onde estava agrilhoado e contempla o Sol da Verdade. Após tal visão o sujeito corre para o interior da mesma para partilhar com os demais a visão que tivera da estrutura do real.
Bem, o nascimento de Cristo é profundamente mais significativo, obviamente, e Platão com certeza concordaria. Primeiro que uma estrela com brilho incomum iluminou o céu daquela noite tão escura a pouco mais de dois mil anos passados. Segundo, não foi um reles mortal que partiu da caverna para acender a procura da Verdade, foi o próprio Sol da Verdade, que desceu até a gruta e em uma modesta manjedoura apresentou a sua majestade para que todos conhecessem o caminho, a verdade e a vida.
Doravante, de modo análogo ao mito da caverna, o fim dessa história é semelhante. Do mesmo modo que os agonizantes da caverna platônica em um primeiro momento desprezaram, perseguiram e mataram o indivíduo que teve uma visão da Luz da Verdade, nós, de nossa parte, continuamos até hoje, insistindo em ficar agrilhoado na caverna escura e sombria do pecado, da ignorância voluntária, desprezando a Verdade divina que se fez carne.
Se isso já não bastasse, perseguimos sutilmente o eco de seu magistério e, covarde e silenciosamente, matamos a semente que, no âmago de nosso coração, quer germinar e dar bons frutos.
O filósofo Mário Ferreira dos Santos, em seus comentários ao diálogo Parmênides de Platão, lembra-nos que nos tornamos “um” quando aceitamos participar do Uno e que nos dissolvemos em uma multiplicidade irreal e nebulosa quando o negamos. Nesse sentido, aceitar o Verbo, o Logos, é aceitar a Verdade que ilumina a nossa vista e, consequentemente, ao transpassar essas janelas, ilumina todo o nosso ser nos tornando “um” com o Uno. Ou como nos ensina São Paulo (Gálatas II, 20): “Eu vivo, mas já não sou eu quem vive, é Cristo que vive em mim”.
Ainda, sobre esse ponto, a Constituição Dogmática DEI VERBUM nos lembra que “Aprouve a Deus, em sua bondade e sabedoria, revelar-Se a Si mesmo e tornar conhecido o mistério de sua vontade, pelo qual os homens, por intermédio do Cristo, Verbo feito carne, e no Espírito Santo, têm acesso ao Pai e se tornam participantes da natureza divina”.
Ora, para se conhecer a Verdade é fundamental que primeiramente aceitemos a sua presença em nossa vida. Para realmente podermos viver de modo digno e reto, temos que aceitar seguir o caminho que nos é apresentado e iluminado pelo Sol da Verdade que bilha nesta noite escura, como diria São João da Cruz. Sem aceitação do caminho o caminhante não se realiza.
Por fim, Ele se fez carne para que nós pudéssemos reconhecer Nele o que há Dele em nós, para que possamos ver em Seu nascimento o nosso renascimento. Porém, antes de qualquer coisa, temos que aceita-lo em nossa vida, em nossa alma e estarmos realmente dispostos a ter de enfrentar a recusa e a perseguição sutil e dissimulada do espírito do mundo e de seus escravos bestializados pela ignorância e pelo orgulho que, no mundo atual, não são poucos, diga-se de passagem.
Se realmente estamos dispostos a isso, façamos, diariamente, de nosso coração uma manjedoura e renasçamos junto ao Logos que Se fez carne e assim, desse modo, possamos permitir que a Verdade nos liberte desta fétida caverna de ilusões e vaidades que é uma vida vivida em um mundo que estupidamente se aparta Daquele que É.
[um dia desses continuamos]