Perto das onze horas da manhã. Estou atarefado na redação, mas lembro de que preciso ir ao banco tirar um extrato e conferir as despesas do mês. Em momentos assim, quando me dou conta de que tenho que fazer algo, devo agir rápido, pois o esquecimento me invade como um raio e isso já me fez perder muitos prazos, datas e afins. E com isso, perco a calma e o bom humor, também.
Aviso aos colegas de que vou até a rua resolver umas coisas, entro no elevador e passo pela portaria do prédio. Ali, também informo que vou ao banco e logo volto.
Na rua, uma cena me chama a atenção. Uma mendiga, com pouca roupa, apesar do frio cortante, caminha pelo calçadão. Ela leva um saco plástico transparente, cheio de latinhas de bebidas vazias. Atrás da mendiga, uma cadela branca, muito magra, com suas tetas caídas, segue meio cambaleante. A fidelidade do animal em meio àquela pobreza me encanta e ao mesmo tempo me assusta. “Coisas do instinto ou amor verdadeiro?”, penso em tom de interrogação. Paro por alguns segundos. A mendiga e a cachorra se vão. Viram a esquina e somem entre os prédios do centro da cidade. Sigo meu caminho rua afora sentindo na cara o vento gelado de um interminável inverno. Tenho que ir ao banco e preciso fazê-lo rápido, pois as coisas na redação urgem, falta menos de uma semana para o fechamento do periódico mensal.
Antes da próxima esquina, um velhinho baixinho, magrinho e de aparência muito pobre me aborda. “Moço, o senhor sabe onde fica o Paraná Banco, aquele lugar que empresta dinheiro pra gente?”, pergunta e eu paro.
Na verdade, eu não sabia onde era o Paraná Banco, pois são tantas as financeiras na cidade que a gente se confunde com seus nomes, cores, propostas escritas ou gritadas nos alto-falantes dos carros, além das reclamações por parte dos clientes para com seus juros abusivos e desrespeito na hora de cobrar a conta. Pensei um pouco e me lembrei de que pelo menos cinco quarteirões em sentido contrário, havia uma agência daquela empresa pela qual ele procurava. A placa gigante na cor verde e os cartazes com propostas irrecusáveis de empréstimos sem consulta aos órgãos de proteção ao crédito nas paredes do prédio vieram à minha memória. Eles dançaram para mim como Salomé dançou para João Batista na sedução que o levou à decapitação.
“Olha, a agência deste banco que eu conheço, fica um pouco longe, para lá do prédio do INSS”, observei.
“Me falaram que era por aqui”, respondeu-me o velhinho, mas determinado a fazer o caminho de volta e ir até onde eu havia indicado, embora a distância fosse longa e seu estado físico precário para seguir a pé e mal agasalhado em meio ao frio horrível.
Olhando a fragilidade daquele homem, decidi me informar melhor e entrei em uma loja de consertos de telefones celulares. Pedi informação. O atendente foi muito solícito e me explicou.
“Tem outra loja do Paraná Banco aqui do lado, perto da sorveteria”, informou e sorriu. Agradeci e voltei à calçada onde o velhinho me esperava com sua paciência de santo.
Contei para ele que a loja ficava pertinho e que eu iria para aquela direção.
“Vamos passar em frente, seu? Como é teu nome mesmo?”, perguntei.
“Antônio é o meu nome. Que bom que fica aqui perto. Eu preciso ir lá. Tenho que comprar umas coisas”, disse e sorriu um sorriso de boca quase sem dentes, mas verdadeiro e pleno de amor. Sim, eu vi amor no semblante daquele homem idoso e frágil.
Em frente à agência de empréstimos, ajudei-o a subir a rampa. Uma das funcionárias da empresa era minha conhecida de outros tempos e foi com surpresa que eu a revi. Avisei que seu Antônio queria falar com ela.
“Muito obrigada pela indicação. Vamos ajudar seu Antônio”, falou a moça. Eu me despedi e segui meu caminho, sem contestar a palavra “indicação” dita por ela.
Andei rapidamente e cheguei ao caixa eletrônico do banco onde tenho conta. Tirei um extrato. Tudo certo. Não peguei nenhum dinheiro. Eu quase nunca pego. Mania imbecil esta minha de andar sempre sem grana no bolso, apenas com um cartão de débito, isto quando muito.
Quando estava voltando, uns quinze minutos depois, pelo menos, avisto seu Antônio também fazendo o caminho de volta com seus passos cansados, meio cambaleantes e com um ar de desespero no rosto castigado pelo tempo e pelas tristezas de uma vida nada mole.
“Deu tudo certo, seu Antônio? Conseguiu resolver o problema?”, perguntei.
“Não. Eles só me deram isto”, falou e me mostrou um bloquinho de anotações com a propaganda do Paraná Banco.
“Mas e o empréstimo, o senhor conseguiu?”, questionei.
“Não consegui. Eles não emprestam dinheiro para velhos. Eu tenho mais de oitenta anos e posso morrer a qualquer hora, disseram. Eles não podem emprestar porque acabam sem receber depois. Morto não paga conta. Não tem jeito. É a vida do pobre…”, falou, tentou em vão sorrir e continuou a caminhada com seus passos trôpegos.
Senti uma sensação horrível, uma espécie de impotência ante aquela situação, ante a vida ridícula que vivemos, completamente sem sentido na maioria dos momentos. “É muita injustiça”, pensei e perguntei de quanto seria o empréstimo que ele faria, caso fosse aprovado.
“Eu queria uns cem reais para comprar comida, mas uns cinquenta serviriam. Sem dinheiro a gente não é nada”, respondeu protegendo o chapéu surrado contra o vento encanado da Rua XV de Novembro.
Iludido, meti a mão no bolso e só encontrei o maldito cartão de débito. Eu estava sem um centavo sequer e aquilo me deixou puto da cara. “Eu preciso agir diferente”, pensei.
“Eu queria emprestado para pagar agora, no dia quatro de setembro, que é quando recebo a aposentadoria…”, lamentou seu Antônio.
A voz do velhinho era um açoite para minha alma, para minha humanidade. Precisava ajudá-lo de alguma forma. Voltar até o banco seria muito demorado, pois eu estava bem longe do local naquele momento. Sem pensar, pedi para que ele esperasse na esquina, nas proximidades do meu trabalho. Passo pela portaria, pego o elevador e chego à minha sala.
Peço cinquenta reais emprestados a um colega que sempre me ajuda nestes momentos fatídicos de falta de grana. Ele me estende as notas e eu volto. Seu Antônio continua na esquina, em sua inocência que mais parece uma santidade. Ele me olha sorrindo, mas eu choro. Entrego-lhe as notas me sentindo culpado por não poder ajudá-lo com mais, por não ser capaz de fazer a diferença na vida dele e de tantas outras pessoas.
“O senhor pode esperar para receber no dia quatro?”, pergunta-me com muita humildade, segurando o dinheiro em frente aos olhos cansados.
“Estou lhe dando o dinheiro, seu Antônio. Não quero que me pague. Fique tranquilo. Faça bom uso e compre coisas boas para comer”, digo com minha voz embargada e ele percebe minha aflição.
Seu Antônio me abraça e se vai. Eu não sei se posso fazer o caminho de volta. Confesso que mil sensações me percorreram o corpo e a alma naquele momento. Fiquei parado olhando para a rua movimentada. Pessoas apressadas cuidando de suas vidas. Pessoas esquecidas pelo mundo, se sentindo verdadeiros estorvos. Em meio a tudo isso, eu, com meus medos, minhas angústias e a impotência de quase nada poder fazer por quem mais precisa. Eu, um reles ser humano. Um idiota, cheio de defeitos, medos, culpa e covardia. Eu, em meio à ventania encarnada em uma rua do centro da cidade, que despreza a tudo e a todos, com sua estação de permanente inverno. Eu, um bosta…
Seu Antônio encobriu-se na esquina perto do terminal rodoviário. A mendiga que eu vira antes de ir ao banco, passou por mim de novo. Ela não tinha mais o saco com as latinhas na mão. Ela falava sozinha e gesticulava. Não sei se ela vendeu ou perdeu aquilo que serviria para lhe matar a fome ou suprir outra necessidade qualquer. A cachorra magricela me olhou com ar de felicidade e abanou o rabo numa demonstração de gratidão, perdão ou sabe-se lá o quê. Sorri e chorei ao mesmo tempo num turbilhão de emoções que me invadiram. Continuei olhando para o animal que seguiu fielmente sua dona sem se importar com sua condição degradante. “Acho que fiz a coisa certa desta vez. Eu espero ter feito”, pensei e voltei para o trabalho sem a mínima vontade de dar sequência no que estava fazendo.
(*) Jossan Karsten é jornalista, escritor e poeta. Mora em Guarapuava e é a simplicidade em pessoa. Quando escreve, desafia, provoca, acalma, questiona e responde.