As religiões foram a primeira estrutura organizada de mediação com o divino, tudo que não podia ser compreendido ou visto apesar de produzir efeitos e, portanto, existir: fenômenos naturais, doenças, escuridão, luz, medo.
As tentativas de controlar o aparentemente incontrolável levaram ao conhecimento, e ao controle social. Sem descartar um único dos crimes que se cometeram em nome das organizações religiosas, a ideia de que certos comportamentos eram pecado e seriam punidos, produziu maior bem do que mal à sociedade, talvez pelo princípio, ainda que nem sempre seguido, de amor – ou pelo menos respeito – ao próximo.
Após Renascimento, Iluminismo e Aggiornamento as doutrinas ocidentais parecem ter perdido parte de seus aspectos místicos, enveredado por uma senda mais intelectualizada. O papel mediador que anteriormente ocupavam foi assumido pelo Estado, cujo ordenamento jurídico deveria ter na atual consciência pública um poder semelhante, e se isso não ocorre é precisamente pela chamada leniência de que parece se cercar.
Afirmou-se com propriedade que justiça que tarda não é justiça, e nossa justiça é quase sempre tardia. Qualquer cidadão que puder pagar um bom advogado protelará o castigo a que porventura tenha se habilitado por anos, talvez décadas, até que seu crime prescreva. Quem depender de justiça gratuita pode não ter, geralmente não tem, a mesma sorte. E os sentimentos que este desequilíbrio provoca são contraditórios e ainda assim convergentes: “ricos” acreditam poder tudo e agem de acordo com esta crença, “pobres” acham que serão sempre injustiçados e não se sentem participantes ou responsáveis pela comunidade. Se quisermos ver um monumento à tragédia resultante, basta olhar em torno.
Temos cada vez mais a sensação de que vivemos um horror ilimitado. Parte disso é devido à facilidade de comunicação, em outros tempos um massacre ocorrido na África seria percebido em outros continentes depois de meses, ou anos, e o tempo atenuaria a tragédia. Hoje temos acesso instantâneo a informações sobre ataques terroristas, desastres naturais, epidemias em qualquer parte do mundo, gerando além da natural solidariedade um esgotamento de sentidos, como se tudo fosse demais para que pudéssemos absorver, e talvez seja mesmo humanamente impossível a empatia com tudo o que ocorre no mundo, e devamos tentar racionalizar o que nos choca. Evidente que tal racionalização não pode implicar em insensibilidade, em deixarmos de nos importar com os demais e com nós mesmos.
Os horrores que nos são mais próximos são os da violência desmedida e sem sentido, diariamente ficamos sabendo de assaltantes que não contentes em roubar os bens da vítima a feriram ou mataram, talvez por estarem drogados ou então, mais provavelmente, tão ressentidos que perderam a humanidade e desejaram tirar do outro mais do que ele pudesse perder (“isso não é nada para você, playboy, teu carro tem seguro” é uma frase muito ouvida por assaltados, como se estes é que cometessem crime ao tentar resguardar sua propriedade).
Temos notícias de escolas que são arrombadas, nas quais os invasores, além de levarem equipamentos eletrônicos, dinheiro e até mantimentos da merenda, praticam atos de vandalismo totalmente desnecessários ao que supomos ser seu propósito de roubar bens materiais, destruindo documentos, quebrando móveis, até tentando causar incêndios; e talvez seja isso que mais doa em educadores: a resposta estúpida de quem se sente excluído da instituição, talvez a única que poderia ajudar a incluí-lo.
De forma geral, representam uma parcela da população que não teve acesso ao sistema educacional, revelando toda a perversidade social de que são vítimas e também algozes.
Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.