22/08/2023

200 anos de Guarapuava é questionado pelo Departamento de História da Unicentro

Da redação – O Prof. MS. Francisco Ferreira Junior , pelo  Departamento de História da UNICENTRO, encaminhou uma carta aberta à Rede Sul de Notícias questionando so 200 anos de Guarapuava. Leia´o texto: 

"Carta Aberta
O que Comemoramos?
“Cada pagina uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande Homem.
Quem pagava a conta?”

O trecho acima faz parte do poema Perguntas de um trabalhador que lê,
do dramaturgo baviero Bertold Brecht e é comumente encontrado como ponto
de partida reflexivo em vários livros didáticos de História. O texto de Brecht
questiona aspectos de um modelo historiográfico há muito tempo criticado e
superado pelos historiadores acadêmicos, modelo esse que entende a história
como um lugar para se eleger e celebrar heróis e datas tidas como
importantes.
Os debates historiográficos do século XX, baseados em profundas
reflexões teóricas, já estabeleceram conceitualmente a separação entre os
termos memória e História. A memória é a lembrança espontânea do passado
que faz parte da vida de cada um, podendo ser coletiva ou individual, é cheia
de descontinuidades e lacunas, fantasias e construções. A História, embora já
não tenha a pretensão de ser uma verdade absoluta, é uma pesquisa
cientificamente conduzida que visa o conhecimento do homem em seu
passado através dos vestígios que restaram.
Tais definições se fazem necessárias em um momento em que o povo
de Guarapuava assiste ao nascimento de mais uma comemoração. Já há
algum tempo a mídia vem divulgando o início dos festejos que culminarão nos
“200 anos” da cidade, lá por junho de 2010. Uma comemoração faz parte das
atividades da memória. Ela comumente estabelece marcos e constrói origens.
Isso é salutar para o reconhecimento de uma identidade coletiva. Mas quando
uma data comemorativa surge de repente, ou muda de uma hora pra outra, é
preciso suspeitar. A eleição de uma data comemorativa é sempre uma escolha
baseada em um ponto de vista, e, por isso mesmo, sempre arbitrária. Está a
mercê de interesses políticos e pessoais, e por isso mesmo, é essencialmente
excludente.
É nesse ponto que a História, na figura dos historiadores, deve entrar em
cena. Não é função da História comemorar. Não é função da História festejar o
passado, ou “um passado”. No caso específico da cidade de Guarapuava, que
possui uma Universidade Pública onde se desenvolvem pesquisas históricas –
acadêmicas e cientificamente referendadas – é função desses historiadores,
que fazem história não por lazer ou mera curiosidade, mas por profissão, expor
seus debates, suas inquietações e seus resultados a comunidade. Isso se
resume, no jargão acadêmico, em uma atividade de extensão.
1810 – início da colonização de Guarapuava, 1819 – fundação da
Freguesia de Nossa Senhora do Belém, 1853 – elevação da freguesia á
categoria de vila… A respeito de Guarapuava poderiam aparecer aqui ainda
uma infinidade de datas. À História acadêmica não convém eleger quais delas
devem ser comemoradas, mas sim propor a problematização: o que realmente
se comemora? No que diz respeito às datas acima, qualquer uma delas, se
festejada, mesmo sem intenção, estará sempre corroborando com uma visão
eurocentrica há muito criticada: a história só começa a partir da presença do
colonizador vitorioso. Por que nunca se cogitou comemorar as datas das
vitórias dos Kaigangs sobre as expedições de Afonso Botelho, no final do
século XVIII?
A idéia de “vazio demográfico” da região central do Paraná esta sendo
continuamente desconstruída pelas recentes pesquisas históricas. Já sabe-se
que não houve nenhuma “conquista pacífica”. Os Kaigang estavam aqui muito
antes da chegada dos luso-brasileiros, e antes dos Kaigang outros povos mais.
Koran-bang-rê, Atalaya, Guarapuava, independente do título utilizado o lugar é
o mesmo. Desse ponto de vista os “200 anos” já vão longe.
E quanto aos heróis a serem comemorados, quais os critérios para
escolhê-los? Em um momento histórico em que cada vez mais as diferentes
étnicas lutam para afirmar sua identidade cultural, negada por um processo
continuo e velado de exclusão, é muito estranho que de novo e sempre
continuem sendo comemorados os nomes dos “grandes heróis brancos” que
construíram o Brasil. Azevedo Portugal, Chagas Lima, Afonso Botelho, sempre
os mesmos nomes estampados nas ruas da cidade. Terão sozinhos construído
Guarapuava? A cidade não existiria sem eles? Quem escolhe os heróis?
E os escravos afro-descendentes, os brancos pobres, as prostitutas, os
prisioneiros, os indígenas, toda essa massa sem a qual nenhum general
venceria, nenhum rei governaria, não merecem eles denominar as ruas? É até
irônico que um dos poucos nomes indígenas que a história oficial celebra,
Pahy, seja o nome de um índio que, pelo seu povo, poderia ser facilmente
entendido como um traidor.
Os historiadores e suas pesquisas não vão impedir as comemorações
arbitrárias. Tampouco têm o poder para evitar os usos políticos do passado,
sejam quais forem. Porém já dizia há algum tempo um dos mais reconhecidos
dentro do oficio, Eric Hobsbawm, que a tarefa do historiador é lembrar as
pessoas o que elas gostariam de ter esquecido. Mesmo raramente consultados
de forma digna sobre as questões comemorativas, os historiadores existem,
continuam pesquisando e estão de olho. A respeito das comemorações eles
nunca deixarão de perguntar: quem pagará a conta? "

Prof. MS. Francisco Ferreira Junior
Pelo Departamento de História da UNICENTRO

Cristina Esteche

Jornalista

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