22/08/2023

Enquanto isso, na Velha Rapapé

Conta-se que na Velha Rapapé todo negócio que poderia demandar negociação acaba, por “hábito cultural”, transformando-se em negociata. A Velha Rapapé é uma cidade quatrocentona (diz-se assim das  vilas ou famílias mais antigas), governada por um désposta desclarecido. Ao redor deste, perfilam-se súditos que são escolhidos conforme o grau de bajulação e cortejamento.
Naqueles dias, Dom Cacá, o déspota, passava por mais um inferno astral, entre as tantas crises que lhe assombravam. Esquecera que havia a Câmara dos Lordes. Nada a ver com a nobreza inglesa, porém na Velha Rapapé usar um chapéu ou ter cara de mal eram pré-requisitos para tal deferência. Naturalmente que nossos lordes tinham a distinta missão de “fazer” leis.
Por fatores, suponhamos, “culturais”, os legisladores não dominavam muito bem essa técnica chamada “legislar”. Para facilitar a trabalhosa rotina de se reunir duas vezes por semana, os nobres decidiram simplificar as decisões: quem é contra, permaneça como está; quem é favor, levante-se. E, exaustos desse exercício abdominal, encerravam a sessão.
Dom Cacá irritava-se. Não pelo “senta-levanta”. Para ele, a Câmara dos Lordes nem deveria existir, pois, se assim fosse, poderia economizar 600 mil patacas por mês. E, convenhamos, 600 mil patacas aplicadas num banco, com taxas especiais… Seria a alegria da piazada! Sim, pois Dom Cacá resolvera que sua dinastia deveria ter sequência e tratou de preparar a prole para repartir, em vida, sua maior riqueza, sua maior herança: o espólio eleitoral.
Se a Câmara dos Lordes já incomodava só pelo fato de existir, que dirá se os nobres resolvessem começar a “raciocinar”. Seria uma lástima. Dom Cacá começou a ouvir barulhos estranhos vindos da casa vizinha, onde a nobreza lordiana se reunia. Acostumado ao ranger das cadeiras, do “senta-levanta”, ouvia murmúrios. O déspota acionou seu espião-mor, Damião, e num segundo ficou sabendo, para seu desespero, o que jamais queria admitir: os nobres não só falam, como pensam e também agem.
Parte dos lordes estava insatisfeita com seus subsídios financeiros. Pela importância do cargo, achava-se que o vencimento de um nobre deveria ser 15 mil, 20 mil patacas. Dependendo do projeto, negociava-se um adendo de mais 30 mil  ou 50 mil patacas. Era um autêntico supermercado de negócios.
Dom Cacá começou a perder votações… uma… duas… Acionou seu “Conselho de Pensadores”. Via de regra, o conselho era formado por ele, somente ele. Nas crises infernais, o pundonoroso chefe de Estado da Velha Rapapé ouvia alguns súditos mais familiares, especialistas em coçar egos. E foi numa destas que decidiu abrir as burras do erário e acorrer aos clamores dos nobres lordes, engordando as finanças, distribuindo cargos.
Os nobres lordes deixaram novamente de pensar. Voltaram à rotina do senta-levanta. Passaram uma borracha em cima das leis que tinham feito. Afinal, era tudo brincadeira mesmo. E deram sôssego ao empedernido Dom Cacá.  
Todos eles, só eles, foram felizes para sempre na Velha Rapapé.

Cristina Esteche

Jornalista

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