A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) apresentou à Corte Interamericana de Direitos Humanos, orgão vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA), o caso “Antonio Tavares Pereira e outros vs. Brasil”, sobre o assassinato do trabalhador rural Antônio Tavares e as lesões corporais sofridas por 185 camponeses ligados ao MST, por policiais militares, em 2 de maio de 2000, no Paraná.
O episódio é considerado pelo MST como “um dos momentos mais emblemáticos do processo de violência e de criminalização na luta pela terra”. Passado quase 21 anos do crime, a apresentação do caso à Corte resulta, da omissão e não responsabilização dos envolvidos na morte do trabalhador e repressão massiva pelo Estado.
Desde 2014, os denunciantes originários do caso, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Justiça Global, MST, Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP) e Terra de Direitos, e o Estado brasileiro iniciaram tratativas para tentar buscar uma solução amistosa, mas foram todas frustradas. Por isso, os peticionários, solicitaram à CIDH que o caso fosse levado à Corte. Ainda que o caso não tenha ocorrido durante o governo de Jair Bolsonaro, cabe à atual gestão responder, enquanto Estado ao julgamento.
Caso seja condenado, será a terceira vez que o Brasil é responsabilizado na Corte Interamericana por graves violações de direitos humanos aos integrantes do MST do Paraná. O Estado brasileiro já foi sentenciado pelo assassinato do trabalhador rural Sétimo Garibaldi e por interceptações telefônicas ilegais contra associações de trabalhadores rurais ligadas ao Movimento Sem Terra.
2 DE MAIO DE 2000
Em 2 de maio de 2000, cerca de 50 ônibus com trabalhadores rurais Sem Terra seguiam em caravana de Candói a Curitiba, para participar da Marcha pela Reforma Agrária, organizada pelo MST, em comemoração ao Dia dos Trabalhadores. Entretanto, na BR-277, em razão de um bloqueio feito pela Polícia Militar, os passageiros desceram de um dos ônibus para perguntar o que estava ocorrendo.
Neste momento, conforme o MST, policiais militares fizeram disparos contra os trabalhadores, matando Antonio Tavares e ferindo outras 185 pessoas. A Polícia Militar agiu por determinação do Governo do Estado na época, Jaime Lerner, sem amparo de qualquer ordem judicial.
Antonio Tavares tinha 38 anos e morreu deixando esposa e cinco filhos. Era assentado da Reforma Agrária no município de Candói e fazia parte do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município. Conforme o MST, o ataque à Marcha não foi um caso isolado, está inserido num contexto de grande repressão aos movimentos sociais de luta pela terra no Paraná, endossada pelo então governador Jaime Lerner.
Entre os anos de 1994 e 2002 – primeiro e segundo mandatos de Lerner – ocorreram 502 prisões de trabalhadores rurais, 324 lesões corporais, sete trabalhadores vítimas de tortura, 47 ameaçados de morte, 31 tentativas de homicídio, 16 assassinatos, 134 despejos violentos no Paraná. Em 2001, um ano após o assassinato, um monumento criado pelo arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer foi inaugurado no local do crime, às margem da BR -277.
A obra de 10 metros de altura presta homenagem a Antônio Tavares e a todas as vítimas do latifúndio. José Damasceno, da coordenação estadual do MST, espera que, além da condenação do Estado brasileiro, que a denúncia na Corte Interamericana ajude a pautar na sociedade o respeito aos movimentos sociais e à democracia.
Essa vitória é uma conquista, nos alivia, e nos dá condições melhores de discutir a violência que o Estado brasileiro cometeu. É importante que o assassinato do Antonio Tavares e de muitos outros militantes de movimentos populares em todo o Brasil não caiam no esquecimento e fiquem à mercê da política adotada pelo Estado, de colocar panos quentes, de absolver, e mantendo a impunidades de crimes. A impunidade acaba incentivando que surja mais violência.
APÓS 20 ANOS
O assassinato de Antônio Tavares e as lesões corporais sofridas pelas demais vítimas permanecem impunes. Em 4 de maio de 2000, foi instaurado Inquérito Policial Militar (IPM); o Ministério Público Militar emitiu um parecer favorável ao arquivamento dos autos em 9 de outubro de 2000; e já em 10 de outubro de 2000, o Juiz Militar determinou o arquivamento do caso.
De acordo com o MST, o Ministério Público Estadual, entendendo que se tratava de homicídio doloso, portanto, de competência da Justiça Estadual, ofereceu denúncia contra o policial Joel de Lima Santa Ana. No entanto, o Tribunal de Justiça, através de habeas corpus impetrado pelo réu, encerrou o processo criminal com o argumento de que o caso já havia sido arquivado pela Justiça Militar. A Procuradoria de Justiça não recorreu desta decisão.
A coordenadora da Justiça Global, Sandra Carvalho, destaca que “a chegada do Caso Antônio Tavares à Corte Interamericana é uma grande oportunidade para se debater a violência policial no Brasil e a competência da Justiça Militar para julgar crimes comuns cometidos por policiais militares em serviço, via de regra, assegurando a não responsabilização desses agentes públicos”.
CONCLUSÃO DA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH)
O Caso foi apresentado à CIDH em 2004. No Relatório de Mérito, proferido em 2020, a Comissão aponta que o Estado brasileiro não apresentou explicação que lhe permitisse considerar que a morte de Antonio Tavares resultou do uso legítimo da força; pelo contrário, ressaltou que não há controvérsia em três aspectos fundamentais: primeiro, que o tiro que causou a morte partiu de um policial militar; segundo, que o referido agente não agiu em legítima defesa, mas sim para assustar os manifestantes; e que o tiro foi disparado quando a vítima estava desarmada.
Com base nos fatos, a CIDH concluiu que o Estado brasileiro violou os direitos consagrados nos artigos 4.1 (direito à vida), 5.1 (integridade pessoal), 13 (liberdade de pensamento e expressão), 15 (direito de reunião), 22 (direito de movimento e de residência), 8.1 (garantias judiciais) e 25.1 (proteção judicial) da Convenção Americana. E recomendou a reparação integral das vítimas diretas e dos familiares de Antonio Tavares; medidas de atenção à saúde física e mental necessárias para a reabilitação das 185 vítimas diretas e dos familiares de Antonio Tavares. Bem como a investigação de maneira diligente, imparcial e efetiva, dentro de um prazo razoável, para esclarecer os fatos de forma completa e impor as punições que correspondam às violações. E, por fim, medidas de capacitação dirigidas aos órgãos de segurança que atuam no contexto de manifestações e protestos.
Conforme Darci Frigo, coordenador da Terra de Direitos, “o analisar o caso e enviar para Corte Interamericana, a CIDH entendeu que houve uma grave violação do direito à vida e reconhece que o Estado brasileiro se omitiu e não adotou as providências necessárias no caso para apurar as responsabilidades sobre o assassinato do Antônio Tavares, punir quem cometeu o crime e demais autoridades que tenham alguma responsabilidade pela ação de repressão ao MST. O Estado brasileiro, ao não aplicar a lei para apurar a conduta que tirou a vida de uma pessoa, deve ser responsabilizado”.
Por fim, Frigo afirma que acredita que a audiência na Corte seja uma oportunidade de avançar em políticas públicas para a garantia do acesso à terra no Brasil.
Estamos vivendo o pior momento de possibilidade de garantia de direitos de acesso à terra. Os órgãos responsáveis por regularizar áreas, territórios quilombolas, fazer a Reforma Agrária ou demarcar terras indígenas estão proibidos pelo próprio presidente da República de exercitar comandos constitucionais que determinam a Reforma Agrária e a titulação quilombola. Não há possibilidade concreta de avanço de direitos. Enquanto isso no Congresso Nacional há uma agenda de retirada de direitos, essa combinação explosiva de ausência total de políticas sociais é cada cada vez mais prejudicial ao pacto constituinte de 1988.
(Fonte: MST-PR)