22/08/2023
Cotidiano

Paiol de Telha mantém a tradição da Recomenda das Almas

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A comunidade quilombola Paiol de Telha dá continuidade a uma tradição herdada dos antepassados. A Recomenda da Almas acontece na Sexta-Feira. Os preparativos começam já nas primeiras horas do dia. Cada família prepara o que vai oferecer aos rezadores e convidados tendo como produto principal o que foi colhido na safra do ano. Nenhuma outra atividade a não ser a preparação dos alimentos é feita nesse dia.

“Os mais antigos não penteiam o cabelo, não varrem a casa, não ligam o rádio, e falam baixo”, relata o quilombola Leonardo Camargo Soares da Cruz, o Kunta, (foto) bailarino da Companhia de Música e Dança Afro Kundun-Balê – Quilombo Paiol de Telha.

A tradição remonta um ritual religioso celebrado a partir das 23 horas da Sexta-Feira da Paixão e que se estende até as primeiras horas da manhã do Sábado de Aleluia.

Para não deixar a tradição dos seus antepassados perecer com o tempo o incentivo à preservação partiudos mais jovens há cerca de quatro anos, já que os mais idosos tinham  deixado a tradição de lado. “Eu me interessei por esses ritos e estou aprendendo os cantos, as orações, as benzeduras e a quero me tornar um dos guardiões dessa tradição ancestral”, disse Kunta.

Os ensinamentos estão sendo repassados por Isabel Santos da Cruz. “Quando vi que meus filhos não queriam saber de nada disso, chamei um dos meus sobrinhos e ensinei tudo a ele”, afirmou. A neta de “Tia Isabel”, Mariana, aprendeu os cantos sagrados quando tinha 9 anos, e hoje com 12 anos é também é uma das guardiãs da tradição.

O ritual começa numa das casas escolhidas pelos rezadores, entre os quais também estão José Soares, Juvenilia Soares da Cruz, Ana Soares da Cruz. As pessoas cantam na porta, do lado de fora da casa, e batem três vezes a matraca (instrumento feito com madeira) . Após a cantoria que encomenda as lamas dos antepassados daquela família, a porta é aberta pelo dono da casa e a procissão entra. Um altar já está pronto na sala. Depois da reza a anfitriã oferece as guloseimas preparadas durante o dia. Pipoca, paçoca de amendoim, bolo de polvilho, bolo de fubá, arroz doce, café, queijo, pão caseiro, são alguns dos quitutes típicos oferecidos. O ritual segue de casa em casa até a madrugada. 
“O que o ritual incentiva também é o espírito da partilha, a união entre as famílias. O que nossos avós, bisavós faziam continua sendo realizado até hoje. É um momento sagrado que exige uma outra conduta social, mais radical como não pentear o cabelo, jejuar”, observa Kunta.

Os cantos tem tom de lamento que chora a morte de Cristo e recomenda as almas. “São cantados três Pai-Nosso. Um é para a Santa Cruz, outro para as almas e o último para o dono da casa. As orações ao oferecidas às almas

De acordo com o quilombola, os trabalhos de pesquisas feitos dentro da proposta de recuperar e preservar a cultura da comunidade dentro do Projeto Herança Cultural (Universidade sem Fronteiras), os levou a “mergulhar” num universo cultural popular “muito rico, pois acabei descobrindo outros valores”.

A crença começa já no plantio da safra quando uma parte da lavoura é escolhida e se torna intocável. “Essa parte é ofertada às almas para que a safra seja promissora e a benzedura quem faz é o Tio Zé (José Soares da Cruz)”.

Outro costume mantido nesse dia é a defumação das casas. “Queimamos arruda, guiné, erva-cidreira, alecrim. É muito bom para espantar olho ruim”, ensina Carlos Soares da Cruz, o Carlinhos. A colheita de macela do campo, uma planta medicinal, também feita antes das 18 horas. “O remédio fica benzido e é consumido durante o ano contra dores de barriga, de estômago”, diz Kunta. “Me sinto na obrigação de dar continuidade a tudo isso”, afirma.

 

 

Cristina Esteche

Jornalista

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