22/08/2023
Cotidiano Thiago de Oliveira

Comer ou dormir?

Manter-se vinculado a esta sociedade é estar em constante tensionamento psíquico. O alívio, para muitos, é dormir

Les yeux clos (1890), Odilon Redon

Dia desses estava almoçando com meus amigos. Descontraídos, trocávamos perguntas do estilo “você prefere”. Frio ou calor? Mar ou piscina? Manhã ou noite? Para contribuir com a comensalidade, questionei: vocês preferem comer ou dormir? A resposta foi unânime — dormir!, seguido de um “né!”. Como se fosse óbvio! Né! O que é melhor que nanar?

Pensei melhor sobre a validade da questão. Comer e dormir são necessidades fisiológicas. A escolha de uma não exclui a outra. Reformulei: você sente mais prazer em comer (uma refeição saborosa!) ou dormir (uma noite de sono revigorante!)? A resposta continuou sendo o sono.

Iniciei há alguns dias a leitura de “Desaparecer de si: uma tentação contemporânea”, do antropólogo francês David Le Breton. Em seis capítulos, o autor disserta sobre uma tendência que noto e que me interessa há algum tempo. A vontade de desaparecer sem morrer, ainda que por um instante. É isso que Le Breton chama de “branco”. Um desinvestimento social.

Dormir para escapar

Le Breton expõe diversas maneiras de desaparecer de si. Há os indiferentes, que interpõem ao mundo uma vidraça de proteção. Os ficcionistas, como Fernando Pessoa, que se multiplicam em seus personagens. Os que trocam de nome e recusam o próprio passado, como Lawrence da Arábia. Os depressivos, que deserdam a própria luta. Há também os viandantes, os viciados em jogos, os anoréxicos, os adictos em álcool e drogas, entre outros. Um desses modos é o desaparecer no sono.

Comer ou dormir? Não me incomodaram as respostas. Eu prefiro comer. Mas adoro dormir. O que me intrigou foi a entonação e a rapidez da resposta. Dormir! Né! Por quê? Talvez porque:

Sempre presentes através das tecnologias digitais, mobilizados para as infinitas urgências e em uma concorrência fantasmagórica, ficamos profundamente desorientados. Instigados, a todo momento, ao autoaperfeiçoamento, carregamos o fardo de ser quem somos – mas quem somos? Não há sustentação nessas identidades. A autocoerção (produzida externamente) que substituiu a antiga coerção externa nos faz lutar pelo personagem que fizemos ou fizeram (e continuam fazendo a todo momento) de nós em tantas frentes. Mas nossa subjetividade está adoecida, não dá conta dessa temporalidade.

Cada vez mais descrentes num projeto político e distantes de propósitos coletivos, nossos laços comunitários se tornam frágeis. Nenhum destino compartilhado. Manter-se vinculado a esta sociedade é estar sempre em tensionamento psíquico. A construção e a manutenção da própria identidade se torna um trabalho constante. O que nos organiza? As diretivas dadas pelos algoritmos aprofundam essa tensão.

A “brancura” de Breton é o que busca aquele que, sob o fardo do processo cada vez mais penoso da individualização, quer se distanciar de si. Queremos dormir. Não somente porque estamos fatigados. Esse sono desejado, que muitas vezes vem somente com medicamentos hipnóticos, não é aquele que nutre. De fruição do inconsciente; do sonho lynchiano. Queremos, na verdade, aquele que nos apaga. Como dito, desparecer de si.

Qual o espaço que nos protege das desordens do mundo? Fisicamente, cada um tem o seu. O quarto, a praça, a montanha. A desordem interior, todavia, também é fruto da temporalidade. As milhões de maneiras de ser e estar estão todas erradas: o vídeo a seguir desmente a compreensão anterior. Mas o post a seguir convalida. Milhões de vozes sussurrando no ouvido de um corpo social esquizofrênico.

As tecnologias de informação usadas para o refino das técnicas de exploração fragmentam os indivíduos de maneira sem precedentes. Esses indivíduos estão cansados de manter a farsa de si mesmos. Com a virtualização, o funcionário que percebe a própria exploração não aspira mais à dissolução do sistema que organiza os trabalhadores em classe, mas à dissolução de si. É escapando de si que ele escapa do despropósito ao qual está submetido. Diante das telas, no doom scrolling, se deixa ser dissolvido na malha algorítmica que conforma, com seus infinitos moldes que logo se esfarelam. É uma forma de dissolução de si, ainda que frustrante. No sono, no entanto, eu não preciso ser ninguém.

Dormir, nesse sentido, é uma astúcia para fugir ao inexorável desafio de ter de assumir a própria existência.

(David Le Breton)

Aos meus amigos que estavam na mesa e responderam que preferem dormir, não me levem a mal. Bernardo Soares (Fernando Pessoa) concorda com vocês:

Não sei de prazer maior, em toda a minha vida, que poder dormir. O apagamento integral da vida e da alma, o afastamento completo de tudo quanto é seres e gente, a noite sem memória nem ilusão, o não ter passado nem futuro.

 

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Thiago de Oliveira

Jornalista

Jornalista formado pela Universidade Estadual do Centro-Oeste. @tdolvr

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