Guarapuava – Quilombolas se ressentem com falta de apoio oficial. Falta atendimento de saúde, incentivo à cultura e ao esporte, infra-estrutura básica e vontade política em tudo
Uma chapa de compensado, uma bolinha retirada de embalagem de desodorante rolon, dois pedaços de madeira como raquetes e outro simulando a rede no jogo de tênis de mesa.
A mesa é improvisada nos terreiros das casas ou sobre o gramado que também serve como palco para os ensaios.
É desta forma que bailarinos e percussionistas da Companhia de Música e Dança Afro Kundun Balê Quilombo Paiol de Telha ocupam os intervalos entre os afazeres artísticos, domésticos e escolares. Sem acesso a qualquer equipamento esportivo a vontade de praticar esportes motiva a criatividade.
Para eles, um brinquedo pode ser tão simples quanto uma pedra, um prato de papel ou um ovo de galinha com um rostinho desenhado. Nossas crianças nunca tiveram nada por parte do Município, nem mesmo algum kit esportivo, reclama a líder comunitária Ana Maria Alves da Cruz Oliveira.
Até bem pouco tempo o jogo de futebol tinha como bola camisetas velhas recheadas com papel e dois pedaços de madeira serviam para delimitar o gol. Pedimos uma bola e redes para a Secretaria Municipal de Esportes e a resposta dada foi de que os kits eram destinados apenas para as escolinhas do município. Nossas crianças ficaram sem, relata Ana Maria. Ela diz não entender o porquê desse descaso por parte das autoridades municipais. Nossas crianças custam muito pouco para o governo. Não consomem drogas, não perambulam pelas ruas da cidade. Elas estão aqui, estudando, dançando e representando Guarapuava pelo Paraná afora e não há esse reconhecimento. Isso nos causa revolta, porque em tempos de eleições a nossa comunidade passa a existir no mapa do município porque somos eleitores, observa.
Sem ter acesso a brinquedos industrializados, em contrapartida, as crianças têm a natureza e a criatividade à sua disposição. A brincadeira Cinco Marias que estimula a coordenação motora é feita com pedrinhas, enquanto a presi-presi, outra brincadeira que exige concentração, se limita às palmas das mãos. Em dias de calor as cachoeiras são os pontos preferidos para os banhos ao ar livre. A gente é feliz desta forma. Somos livres, comenta o bailarino Djankal Mateus de Lima, 14 anos.
A acadêmica de educação física da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Érica Lopes, que investiga as políticas públicas de esporte e lazer nos quilombos do Paraná, observa que a realidade é essa mesmo. Não há nada sistematizado, não há políticas públicas governamentais. Tudo é improvisado a partir da utilização de recursos naturais, diz. Érica, acompanhada pelo também universitário Guilherme Reino Serrone, passou os dias de Carnaval no Paiol de Telha.
Érica já passou por 30 comunidades quilombolas paranaenses e vê um diferencial no Paiol de Telha. É a única comunidade que tem um trabalho cultural que resgata toda essa ancestralidade. É um trabalho que deve ser levado como exemplo para outras comunidades, defende. No Kundun é tudo muito bem organizado. Nunca vi nada igual, comenta Guilherme.
O Kundun abriga 20 membros na faixa etária entre 5 e 21 anos, envolvendo os pais em várias atividades de apoio. As mães se dedicam, principalmente, à culinária, para receber os visitantes. As casas, apesar de pequenas, se tornam grandes em receptividade e sempre há lugares para abrigar quem chega no Paiol. Foi assim durante os dias de Carnaval quando outros quatro universitários do campus da Unicentro de Irati passaram os dias na comunidade para formatar um projeto de turismo cultural aprovado pelo programa Universidade sem Fronteiras, proposto pela Universidade, envolvendo o Kundun e seus familiares. A comida é maravilhosa, as pessoas são bacanas, o potencial turístico é enorme e tem o Kundun como a grande atração cultural. Está tudo quase pronto, avaliam os estagiários do projeto.
Aqui se dá um jeito para tudo. Se falta um conforto maior, sobra aconchego e alegria, afirma Rosa Camargo Soares da Cruz, mãe de Kunta e de Anaxilê, ambos bailarinos do Kundun Balê.
Apesar de todo nosso trabalho ser reconhecido no Paraná e já fora dele em Guarapuava não temos direito nem à Lei de Incentivo à Cultura. Nossos projetos são engavetados sem nenhuma satisfação. Não conseguimos entender essa negação, queixa-se Anaxilê Isabela Soares da Cruz, bailarina e vocalista. Uma coisa tão simples como instituir um dia para se debater a cultura negra em Guarapuava foi negado pelo prefeito. Então, podemos esperar o quê dessa falta de vontade política?, questiona a bailarina que é acadêmica de História na Unicentro. Ela se refere ao veto ao projeto de lei de autoria do vereador João Napoleão que cria o Dia Municipal da Consciência Negra (20 de Novembro).
A comunidade se ressente também com a falta de um mínimo de infra-estrutura para receber visitantes. A gente necessita de uma cozinha, de espaço para acomodar essas pessoas, diz Ana Maria. Ela lembra que o Kundun está construindo um barracão como sede, mas que as dificuldades esbarram na mão-de-obra. O material foi conseguido, mas ainda falta alguma coisa e os pais que se propõem a construir têm que buscar a sobrevivência, muitos, na colheita de feijão.
Sem apoio
O Paiol de Telha abriga 63 famílias cadastradas, a maioria quilombola segundo reconhecimento pelo Governo Federal. Como os filhos vão se casando e construindo no mesmo terreno dos pais esse número é bem maior por causa dos agregados. Cerca de 150 crianças até 12 anos de idade vivem na comunidade, conforme levantamento informal feito pelas lideranças para a Festa de Natal em 2008. O número de adolescentes e de jovens chega a cem.
Distante há cerca de 30 quilômetros do centro urbano, dos quais oito são de estrada de chão, a comunidade se ressente com a falta de coisas básicas. Não há telefonia pública, o atendimento de saúde é precário. Nossas mulheres não têm a mínima dignidade no atendimento médico, aponta Ana.
Tudo é concentrado num barracão comunitário que foi improvisado a partir de uma estrebaria. Lá é a sala de aula para alfabetização de adultos, é ponto de reuniões, é cozinha comunitária, é unidade de saúde, é depósito. Se o médico precisa de privacidade para atender uma paciente tem à sua disposição um cubículo que mal cabe uma maca, sem janela e com parte do chão podre.
Atendimento odontológico? Somente uma vez às vésperas das últimas eleições municipais.
A comunidade vive como se fosse uma ilha cercada por enormes plantações de milho e de soja. Numa visão mais geográfica, as famílias com renda per capita inferior a um salário mínimo, estão incrustadas em meio às colônias suábias do distrito de Entre Rios, o equivalente ao maior PIB (produto interno bruto) da região, o que agrava ainda mais o contraste dessa exclusão social.
Sem qualquer apoio oficial e cansados de reivindicar sem obter respostas a comunidade que não tem nenhum projeto oficial de geração de renda, está mobilizada para arrecadar recursos e construir um consultório. Aliás, foi a união de algumas pessoas que possibilitou, recentemente, a recuperação da estrada até a sede da Colônia Socorro. Fizemos um mutirão e arregaçamos as mangas para arrumar a estrada, pois íamos ficar sem o ônibus do transporte, afirma João Maria Soares. Cansamos de pedir ao município, diz.
Falta transporte
As dificuldades que rodeiam a comunidade Paiol de Telha são muitas e acabam cerceando os jovens nos seus direitos básicos como, por exemplo, o acesso à educação.
Em 2008, sete foram aprovados em vestibulares nos cursos de psicologia, educação física, propaganda e publicidade e foram impossibilitados de cursar por falta de transporte.
Neste ano, para não perder a faculdade, eles se viram como podem. Para chegar até a Colônia Socorro, onde há uma linha de transporte acadêmico, eles têm que caminhar quase oito quilômetros. A vinda não é o problema. O difícil é andar esse trajeto a partir das 11 horas da noite, já que todas são mulheres, observa Nayan Vanessa de Lima, que cursa o primeiro semestre de nutrição.
Três deles tentaram morar na cidade, mas não seguraram a barra por falta de condições financeiras e por não acostumarem com a vida urbana. Em menos de 30 dias retornaram à comunidade de origem.
Para viabilizar a vinda os acadêmicos estão lutando pela possibilidade de subsidiar o transporte escolar que já existe na comunidade. Outra busca é por duas bolsas para a confecção de carteiras de motoristas.