22/08/2023
Cotidiano

Kundun recupera festa cristã da comunidade quilombola

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Guarapuava – As lembranças de um tempo remoto vêm à mente e a cada frase que as transporta para o Fundão, terra de origem das famílias quilombolas que vivem na comunidade Paiol de Telha (assentamento), é uma lágrima que mareja os olhos.
Dona Ana Aparecida Tubia, a “tia Cida” foto), e dona Maria do Carmo Santos, viveram por muitos anos na Invernada Paiol de Telha, área que também é conhecida como “Fundão”, terra herdada de antepassados escravos. Se elas estão longe da terra de origem, as lembranças e as raízes culturais permanecem firmes, fincadas na terra fértil das lembranças.
Entre os festejos populares, os ritos cristãos próprios do mês de junho eram tradicionais. São Pedro, São João, Santo Antonio e São Sebastião, este festejado no dia 20 de janeiro), sempre mereceram festas especiais.
“Toda a comunidade trabalhava durante dois a três dias só para fazer as fogueiras e levantar os mastros (bandeira com a imagem e nome do santo festejado). Quem fazia a festa era o dono da casa que tinha aquele nome”, conta “tia Cida”.
Após a finalização desse trabalho, as pessoas se reuniam, todos com velas acesas nas mãos, e iam em direção ao olho d´água de São João Maria para ver sua imagem na água, o que era interpretado como um sinal de que tudo daria certo no restante do ano.
“Na festa havia muita comida e muita bebida, sem poder faltar o café e tão famoso bolo de polvilho. “As comidas eram trazidas de casa pelos convidados”, relembra “tia Cida”.
A festa começava cedo, já ao raiar do dia. “Lá pelas 6 horas da manhã a festa já estava começando e me lembro de acontecer na casa do finado Diodato. Vários leitões eram assados e tudo ao som de gaita e violão”, conta dona Maria do Carmo.
Como em toda festa cristã, a reza era o ponto alto do encontro das famílias no Fundão. “As rezas eram de responsabilidade de quem tinha o nome do santo que estava sendo festejado. Depois, arrumavam uma mesa enorme com todos os alimentos que eram oferecidos ao santo”, intervém a “tia Cida”.
Uma figura importante para todas as festas era o chamado “gritadô”, pessoa responsável pelo leilão. “Sem ele chegar a festa não começava, nem mesmo a reza”, diz dona Maria do Carmo.
As festas duravam o mês de junho inteiro. “Todos os santos eram homenageados e no final da festa cada um ia até o resto da fogueira pegar um punhado de cinza para levar para casa. A gente acredita que misturando a cinza com sal e dando pros animais comer eles crescem, engordam, não pegam doenças. A gente dava pra toda a criação (porco, galinha, vaca). E também protege, atrai sorte para a família”, afirma a “tia Cida”.
Outra crença das famílias é relembrada pela quilombola. “ No começo da festa, quando o mastro era levantado para o lado que o vento virasse a bandeirola, a gente acredita que era o santo mostrando o local onde o mastro deverá ser levantado no ano seguinte. Sinto muita saudade desses tempos”, desabafa, com os olhos cheios de lágrimas.

Resgate e Solidariedade
Para recuperar um pouco dessa tradição cristã vivida pelas famílias no Fundão, a Companhia de Música e Dança Afro Kundun Balê promove o I Arraiá do Kundun neste final de semana, 4 e 5.
O santo que será homenageado é São João. “Fizemos uma pesquisa entre os homens que vivem na comunidade e o nome que predomina entre eles é o de João. Por isso, vamos levantar um mastro em homenagem a esse santo”, diz Afixirê Eliete dos Santos Oliveira, bailarina do Kundun e responsável pelas entrevistas junto com Tatiane Marques, Elas são estagiárias do projeto “Herança Cultural”, que integra o sub-programa “Diálogos Culturais” da Secretaria de Estado da Ciência Tecnologia e Ensino Superior (SETI).
“A nossa intenção é motivar a comunidade a voltar a fazer essas festas. Quisemos dar a largada para que os mais idosos possam reviver esses momentos e tenham vontade de retomar esses festejos”, diz Tatiana.
A festa começa no sábado, com arrasta-pé que terá a presença do Pedrão (Chimbica do Pedrão). No domingo haverá jogo de futebol entre a Câmara de Vereadores e o time da comunidade, seguido por almoço, binguinhos, barraquinhas, torneio de truco e outras atividades.
Além de recuperar uma tradi-ção, o I Arraiá do Kundun tem um cunho solidário, pois a renda será revertida para subsidiar o pagamento do transporte dos acadêmicos.

Cristina Esteche

Jornalista

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