Nunca nos cansamos de Clarice Lispector. Sua figura distante, de exóticos olhos rasgados, sotaque peculiar e escrita intensa: um curioso paradoxo de simplicidade complexa.
A Hora da Estrela foi um dos últimos livros lançados antes de sua morte e é a voz de um escritor, Rodrigo S.M., que faz conjecturas sobre o ato de escrever e a construção de narrativas, do insight inicial a todas as possibilidades dentro da história; como os personagens se desvencilham do autor e criam “vida” independente durante o processo de escrita.
O livro apresenta-se como sendo sobre uma datilógrafa nordestina chamada Macabéa, descrita como tão banal que nem o próprio narrador entende por que decidiu contar sua história. Contudo, as reflexões centram-se sobre o ato de escrever e Clarice parece falar [e fala!] através do escritor fictício:
Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias.
Se as redes sociais são ávidas por frases de impacto e a literatura de Clarice Lispector é um terreno fértil para essas apropriações – textos primorosamente escritos, que descrevem sentimentos únicos e ao mesmo tempo universais; tais pequenas “mutilações” no texto original acabam transformando todo o contexto original. Um exemplo?
Ela acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam.
Edificante. Reconfortante. Ora, para que anjos existam basta acreditar? É isso mesmo, Clarice?
Esqueci de dizer que às vezes a datilógrafa tinha enjôo para comer. Isso vinha desde pequena quando soubera que havia comido gato frito. Assustou-se para sempre. Perdeu o apetite, só tinha a grande fome. Parecia-lhe que havia cometido um crime e que comera um anjo frito, as asas estalando entre os dentes. Ela acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam.
Clarice dos olhos de gata, ronronando verdades escondidas.
Ps1: Sempre fico fascinada com esta entrevista, onde ela fala sobre sua história, seus processos e sua escrita. Lindeza.
https://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU
Ps2: Você tem alguma frase/texto/livro preferido da Clarice? Conta aqui 😉