22/08/2023

Ideologia é interpretar em certo sentido?

Ideologia é interpretar em certo sentido ?

Quero começar afirmando que ‘nem tudo está perdido’ e continuar defendendo que ‘a vida vale a pena’ e que o risco que devemos correr tem razão de ser e ‘aconteça o que acontecer’ não podemos jogar fora nossa disposição em manter o alto nível do debate e buscar o melhoramento do quadro atual por um quadro melhor, fazendo com que as boas idéias (não tenho dúvida de que elas ainda existem) possam envelhecer com frutos.  Isto serve para tudo, inclusive para a política. Se nossos governantes não estão tão bem assim, isto também vale para a sociedade.

Contardo Calligaris é psicanalista e atua em psicologia clínica faz muito tempo.  Tem se dedicado a compreender melhor, através da psicanálise, nossa sociedade. Dias atrás, durante a greve da polícia em Pernambuco onde todos nós fomos surpreendidos pela ação caótica de cidadãos comuns (trabalhadores, trabalhadoras) , assistindo de camarotes a perversa prática de saques, arrastões, além de coisas piores, ‘vimos uma  triste cena’.   

Analisando o comportamento coletivo, resultado de uma consciência coletiva, Calligaris tem afirmado que nossa sociedade tem tido um desempenho pífio, de qualidade zero. Apesar de um certo exagero, questionou: “Será que, no país no qual vivemos, as regras do convívio social são válidas unicamente enquanto dura a presença ostensiva da repressão ?”

Em outro momento declara: “se uma sociedade se dissolve em menos de 24 horas porque sua polícia entra em greve, é que esta sociedade mal existia”.  Então, fica claro que precisamos melhorar muito para melhorar o Brasil. A famosa máxima de que pessoas boas podem fazer coisas ruins é tão verdade quanto o seu contrário.  Exemplo disto, registrado para o mundo inteiro,  vimos uma multidão enaltecendo nosso hino nacional com uma demonstração de um civismo singular e, na seqüência, o mesmo público, vaiando, menosprezando e depreciando o hino nacional do Chile com o mesmo fervor de antes.

Independente disto, o fato é que desde o último dia 05 de julho, a propaganda eleitoral está autorizada e discussões entre amigos, familiares e conhecidos sobre este ou aquele candidato ganha dia-dia uma dimensão dantesca, além de um radicalismo ao vivo e a cores. A tensão maior fica por conta do espaço das redes sociais onde os verbos, adjetivos e substantivos são ‘indelicados’ e o ‘velho disputatio’ que marcou os anos 60, 70 e 80 voltou com toda intensidade com o  ultrapassado antagonismo ‘direita’ e ‘esquerda’, com pouca originalidade.

Defensores do Governo Federal e militantes de plantão, considerando-se de esquerda (há controvérsia) costumam imputar àqueles que não rezam nesta cartilha o rótulo de direita, de arcaico, de reacionário. Da mesma forma, representantes e/ou simpatizantes da oposição em face do decreto presidencial sobre os movimentos sociais e seu protagonismo, acusam aqueles de ‘defensores do comunismo’ e de outros ismos impublicáveis. Foi assim que presenciei uma discussão nestes moldes neste fim de semana, o que nas redes sociais já se transformou em um lugar comum.   Não conheço um filósofo brasileiro mais credenciado para tratar da matéria como Vladimir Safatle (filósofo da USP). De longe é reconhecido como o filósofo marxista crítico mais respeitado por seus pares. Tendo  recebido orientação acadêmica do filósofo francês Alain Badiou (um dos legítimos filósofos ‘ainda marxista’), colocou o dedo na ferida ao dizer: “a tentativa de desqualificar toda crítica a partir do clássico sintagma ‘você está fazendo o jogo da direita’ deveria ser motivo de vergonha.” Conheci pessoalmente Vladimir Safatle em um congresso de filosofia em 2002 onde apresentava síntese de sua tese de doutorado, a saber: “Espaço e transformações da filosofia” e pude compartilhar um pouco de suas idéias e pensamentos sobre ação política. Crítico da falência de uma verdadeira crítica, tem sido áspero com aqueles que flertam com o poder pelo poder com argumentos injustificáveis. Recentemente disparou um comentário sobre o evento Copa do Mundo, afirmando: “é triste não estranhar mais que uma política que se veja de esquerda abrace sem complexos a dinâmica anestesiante da sociedade do espetáculo”, deixando subtendido que seria melhor uma esquerda não dirigista, que não seja refém de interesses eleitorais.

Ora, sendo razoáveis, é preciso considerar que todos tem opiniões sobre todas as coisas. Todavia, quase sempre a inclinação por este (a) candidato (a), por esta ou aquela idéia, tem correspondido mais aos  desejos de cada um, mobilizado paixões e servido a interesses nem sempre decentes,  racionais ou lógicos. Temos que , necessariamente,  tomar  cuidado com   a real  diferença entre o modo como me vejo  e o modo como sou visto pelo outro ou o modo como  percebo minhas   idéias  e o modo como  as mesmas são vistas pelo outro. Em um debate de ordem política, é óbvio que há diferenças entre o modo político do PT em relação ao modo político do PSDB, do comportamento de um Jair Bolsonaro preconceituoso e de um Ghandi tolerante. Trata-se , dentre outras coisas, de uma diferença visível, tão visível que não tem como ser negada. Porém, o fundamentalismo maléfico começa quando as pessoas não se limitam mais a constatar que são diferentes, e acrescentam que estes são superiores àqueles. Assim, esta forma raivosa de manifestação é um produto construído com interesses autoritários que destoam do verdadeiro espírito democrático. 

 Tendo como pano de fundo o discurso de quase todos aqueles que colocaram seus nomes à disposição dos eleitores no pleito que se aproxima, precisamos aqui assumir uma posição realista ou minimamente alicerçada no chão. Não há dúvida que de cada 10 brasileiros, 09 querem mudança e isto não significa, necessariamente, ser de esquerda ou de direita, situação ou oposição.  Na mesma proporção, dos 11 candidatos à Presidência da República, explicitamente, 10 clamam por mudança e, da mesma forma, de longe são de esquerda ou de direita.  Só para mensurar bons exemplos, Dilma defende ‘mais mudanças, mais futuro’; Aécio conclama por ‘mudança confiável’ e Eduardo Campos pede ‘coragem para mudar’.

Permitam-me um rápido desabafo: só não quero que prevaleça a tese de Leopardo de Lampeduza de que “tudo deve mudar para que tudo fique como está”. Assim, seguramente, nada de novo sob o sol e um cheiro de corrupção do discurso.

Está mais que claro que o entusiasmo por si só não garante a realidade de novas perspectivas.  Ora, se a fotografia do momento privilegia a mudança, devemos acreditar que elas estão a caminho ou será apenas mais um erro de arbitragem que temos que engolir?

Por Claudio Andrade.

Professor do Departamento de Filosofia da UNICENTRO

Doutor em História e Sociedade/UNESP.

Endereço eletrônico: mestreclaudio@uol.com.br

 

 

Cristina Esteche

Jornalista

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