22/08/2023

‘Aqui os deuses estão também presentes’

É difícil pensar por si próprio. Sempre estamos vinculados a algo ou alguém. O ineditismo e os espíritos livres estão em baixa, sobretudo porque estamos todos fadigados. São raros aqueles que conseguem se sobrepor ao fenômeno do tempo e espaço. Como escreveu Michel Foucault, somos disciplinados e controlados por algo que não nos pertence. Somos mais que dependentes, somos engessados dentro de um condicionamento e, quase sempre, existimos dentro de uma dada situação. O nosso “dentro” depende do “de fora”. Não que sejamos fabricados ou sujeitos artificiais, mas é difícil escapar de uma fórmula e de uma automatização mecânica. E em política, a coisa é mais grave ainda. Quando escutamos a psique da classe política e sua real intencionalidade nos deparamos com a máxima que vem dos mesmos: “Querem coisa séria? Não encontrareis aqui!”. Eis a ponte da pouca atratividade eleitoral.

A percepção das pessoas em relação ao que está posto pelo mundo da política oficial é danosa e de difícil recuperação, mas ainda sim, reversível. A julgar pelo que se apresenta, a tendência é aumentar o descrédito e a vontade de não participar mais do jogo. Entre optar por este, esta, aquele ou aquela, como nos ensinou o pensador italiano Agamben, seria melhor o “Preferiria não”. Se não houver uma reviravolta, a tendência está mais para desconectar o dispositivo e agir naturalmente sem deixar-se ser capturado/enganado do que qualquer outra coisa. Em proporções menores, alguns fazem isto desligando o celular, outros, indo além, decidem parar de brincar e tal qual o psicanalista Freud, denunciar o futuro de uma ilusão.

É claro que a ilusão é sedativa, confortante e, em alguns casos, um bom anestésico, mas esta overdose começa a fazer efeito contrário como morrer de tanto comer ou morrer de tanto medicar-se. É impressionante o número de pessoas esclarecidas que estão assumindo o voto de não votar. Ainda não é uma legião, mas o número de pessoas que já consideraram esta máxima não é pequeno. Por muito menos, os europeus trilharam este caminho e com a permissão do voto facultativo, declinaram de votar. Ainda não há termômetro para medir se esta escolha foi a melhor, mas o fato é que os políticos europeus a tempo não são astros e sim, meramente atores coadjuvantes. Lá os políticos estão mudando porque a sociedade mudou e porque houveram condições para isto. Mudaram porque foram obrigados a isto, como instinto de sobrevivência. Nas últimas eleições (maio de 2014) visando preencher as 751 cadeiras Parlamento europeu, o nível de abstenção foi inigualável. O grau de desconfiança foi abissal. Lá tivemos mais o voto “anti-Europa” do que o voto “Europa”, abocanhando mais de 30% das cadeiras. Lá, como sabemos, a legislação não impede que cidadão comum seja candidato mesmo sem estar vinculado a cores partidárias. Neste tocante tivemos a eleição de 41 representantes sem partido e 54 representantes de partidos novos, mesmo assim o nível de abstenção foi de 56,01%. O que impressionou a crônica política inteligente foi o desempenho de um novo partido intitulado Partido das cinco estrelas italiano. Fundado em 2009, traz o significado de cinco estrelas (cinco pautas, cinco bandeiras, cinco defesas), a saber: abastecimento público de água, transporte sustentável, desenvolvimento sustentável, conectividade na internet e ambientalismo. A Europa pode nos ensinar muito. Um bom começo poderia ser que não estivéssemos vinculados a nenhum “ismo”. Os “ismos” são perigosíssimos, pois costumam nos engolir. Embora seja uma tarefa quase impossível, seria o ideal. Vincular-se a um grupo, corrente de pensamento ou até mesmo uma ideologia pode emprestar ao indivíduo alguma segurança, alguma identidade, mas no fundo é difícil que concordemos com tudo o que este grupo, corrente de pensamento ou até tal ideologia costumam defender. É como assinar sem ler e, às vezes endossar algo que não nos diz respeito.

Que somos aparelhados/dominados/adestrados/automatizados, não tenho dúvida. A diferença está entre ter ciência e não ter ciência. Dito de outra forma, a diferença está entre ser um aparelhado consciente e um aparelhado inconsciente. Ainda fazendo menção aos europeus contemporâneos e seu processo eleitoral, tivemos um acontecimento esclarecedor: a volta do radicalismo. Este outro “ismo” parece estar em alta em todos continentes e isto não é bom e me angustia. Em outras situações, encontrávamos saídas, possibilidades, alternativas. Vários autores de porte da filosofia política contemporânea, a saber: Rancière, Habermas, Vattimo, entre outros, ensaiaram possibilidades de contrapontos efetivos ao atual modelo hegemônico do pensamento mundial sobre o ser humano, sem, contudo, colherem resultados concretos, estruturais e duradouros. Agora, poucos fazem isto. Os conselhos são outros e pouco iluminados. Alguns sugerem que ignoremos; outros sugerem que brinquemos. Há ainda aqueles que sugerem que abandonemos. Sinto falta de Kafka e de seus escritos que nos subsidiavam com o “fascinante poder de insubmissão” e com uma sensibilidade anti-autoritária com muita ironia e bom humor. De qualquer forma, na qualidade de Professor, internalizei que o bom seria trazer de volta o fundamento primeiro de todas as coisas e sempre recuperar formas de vida originais seja na primeira experiência de política na polis grega; seja na primeira boa experiência de escola com a academia de Platão ou o ateneu de Aristóteles; seja na primeira religião, seja na primeira economia sem consumo pelo consumo e outras coisas do gênero. Neste momento, seria fundamental uma reforma política que permitisse ao cidadão concorrer a cargos sem estar vinculado a qualquer ismo ou então o ressurgimento de partidos que realmente tomassem partido sobre algumas estrelas como: “educação”, “saúde/estilos de vida saudáveis”, “segurança”, “cuidado com o planeta” e um cuidado especial com a “subjetividade e com coisas sagradas”. Seria bom ! Apesar de que aqui não é Europa “os deuses estão também presentes”

Prof. Claudio Andrade.

Doutor em História e Sociedade pela UNESP.

Escreve no blog www.guarapuavatube.com.br

Cristina Esteche

Jornalista

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