22/08/2023

A festa do Bode.

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Esse tiozinho de bigode esdrúxulo foi, durante 31 anos, a figura mais temida da República Dominicana. Rafael Leonidas Molina Trujillo era chamado de 'generalíssimo' em público e à boca pequena, de 'bode'

Ler um romance histórico subverte algumas regras básicas referentes às expectativas do leitor, afinal nós já sabemos o final da história – o que nos prende é o caminho percorrido para chegar até lá.

No caso de A Festa do Bode, do premiado escritor peruano Mario Vargas Llosa, o retrato histórico é relativamente recente: o atentado que vitimou o ditador da República Dominicana, general Rafael Leônidas Trujillo, em 1961.

Ditadores costumam render personagens interessantes, tamanhas são suas excentricidades e neuroses. Arrisco dizer que todos os continentes produziram os seus, mas através da capacidade magistral de Vargas Llosa em criar atmosferas minuciosas, podemos observar Trujillo de perto, sua convicção de ser o salvador da pátria e sua verve caribenha polida por anos de treinamento militar norte-americano. Aliás, foi com o irrestrito apoio dos Estados Unidos que o homem que, segundo a mitologia popular, não suava, não dormia, nunca tinha uma ruga na farda e que tratava a todos, amigos e inimigos, com soberba crueldade, transformou por 31 anos a República Dominicana em feudo familiar, reprimindo os opositores com tamanha violência e barbárie que até aliados de outrora, como o governo norte-americano, decidiram impor sanções comerciais que provocaram uma crise interna e expuseram um lado obscuro do governo que a maioria da população ignorava – ou preferia não ver.

O recorte histórico que o livro romanceia é justamente a contextualização dos fatos que levaram à conspiração para o assassinato do general, usando a fictícia personagem Urania Cabral, descrita como sendo a amargurada filha de um senador trujilista, que volta à sua terra natal depois de décadas para responder questões como: ‘por que ela jurou nunca mais pisar no país e por que ela odeia tanto seu próprio pai?’ como condutora do enredo. Além disso, há capítulos narrados pela voz dos conspiradores, cada um com seus motivos para arriscar tudo a fim de exterminar ‘o bode’ – uma das alcunhas do generalíssimo, e outros em que o narrador é o próprio Trujillo, numa história tão interessante que me levou a pesquisar bastante sobre a República Dominicana, ilha da América Central que faz divisa com o Haiti e é um dos principais destinos turísticos do Caribe [já ouviu falar em Punta Cana? É na República Dominicana!] e me proporcionou reflexões sobre processos totalitários e as sombras que produzem ao longo da história da humanidade.

Os capítulos que narram o destino dos conspiradores, que foram presos e torturados durante meses nos porões de prisões militares dominicanas são de arrepiar justamente por não serem ficção, muito menos fatos isolados.

Num mundo onde tudo muda na velocidade de um post em qualquer rede social, convém observarmos que o passado deixa marcas que não deveríamos esquecer.

Ps1: Imaginem a cena: dois distintos senhores, escritores consagrados, se engalfinhando dentro de um cinema no México. Esta cena aconteceu em 1976, entre Mario Vargas Llosa e Gabriel García Marquez, que tinham sido bons amigos até então. A briga rendeu um olho roxo a García Marquez e a ruptura definitiva da amizade, cujo fim jamais foi comentado publicamente por nenhum dos envolvidos. Contudo, comenta-se que o pivô da discórdia teria sido Patrícia, a mulher de Vargas Llosa 😉

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Cristina Esteche

Jornalista

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