22/08/2023
Região

“A intolerância não está só na violência”, diz ‘Pai Nil’

Segundo 'Pai de Santo', a intolerância também se apresenta quando se deixa de falar sobre religião, orientação sexual e outros temas afins

Pai Nil e Filhos de Fé (Foto: Divulgação)

(Foto: Divulgação)

Apenas três quilômetros de estrada de chão, separam a sede e a Localidade de Invernadinha, interior de Pinhão. Em meio à natureza um espaço chama a atenção, não apenas pela beleza do lugar, pelo cuidado, mas pela energia que emana. É ali que está o Centro de Umbanda Mãe Oxum e Pai Oxóssi, o primeiro ‘ilê axé’, ou Casa de Força, do município. Comandado pelo ‘Pai Nil’, filho dos dois orixás que regem a ‘casa’, o umbandista de 55 anos desafia o que é comum, o que incomoda a sociedade tradicional.

Sou negro, homossexual e umbandista.

(Foto: Divulgação)

Numa relação homoafetiva de 16 anos com Marcos da Silva Siqueira, o Marquinhos, ele também criou uma família que foge dos padrões da família tradicional.

Adotei um filho quando ele tinha nove meses. Era tido como uma criança especial e passou por famílias que o devolviam. Eu o gestei fora de mim, dentro do meu coração, conversando enquanto ele dormia. Hoje o João tem 23 anos, é professor graduado em Educação Física, e é o meu orgulho. É uma pessoa iluminada.

Se essas condições são um ‘prato cheio’ para o preconceito, ‘Pai Nil’ ‘tirou isso de letra. Terceiro de seis filhos de uma família humilde, Nilson Ferreira de Almeida acumula conquistas num município tradicionalista e conservador. Pedagogo, com graduação também em Artes, mestre em Educação com dissertação sobre Educação e Religião, ele caminha para a fase final do doutorado pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro).

A ESPIRITUALIDADE

(Foto: Divulgação)

E é entre as pesquisas, publicações de livros, cuidado com as pessoas, que ele destina a maior parte do tempo para a espiritualidade. São 35 filhos de santo, predominando crianças e jovens. “São pessoas que aprendem desde cedo que fazer o bem, faz bem”.

Para ele, a umbanda é uma simbiose com a natureza, com os quatro elementos. E é por isso também que ele escolheu o interior para erguer o templo de fé. “Trabalhamos muito com a água, o fogo, a terra e o ar. E o lugar onde estamos nos dá tudo isso. Mas também é uma precaução contra a intolerância religiosa. Por isso somos precavidos. Temos cinco funcionários que cuidam do local, câmeras de segurança e alarmes.

BRASIL SE DIZ LAICO

Apesar do Brasil se dizer um país laico, que aceita todos os credos, e de que intolerância religiosa é crime, só em 2023 foram 1.478 denúncias. Os números são de acordo com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Essa estatística mostra um aumento de 60% em relação a 2022. E as religiões de matrizes africanas, que detêm o quinto lugar no ranking das religiões, é a mais perseguida. “Temos notícias de vandalismo, perseguições, invasões em terreiros. E olha que a umbanda é uma religião brasileira”.

Para o ‘Pai Nil’ não existe uma religião melhor do que outra.

Buscamos o mesmo Deus, mas com ritualísticas diferentes. E apesar da evolução dos sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos, a violação maciça ao direito de liberdade religiosa no Brasil infelizmente é uma realidade. O programa ‘Fantástico desse domingo (21) mostrou muito bem essa condição.

E com base nisso ele faz um recorte para a cidade onde vive. Conforme o ‘Pai de Santo’, embora seja aceito pela sociedade pinhãoense, ele acredita que há falta de uma política cultural que valorize as matrizes africanas. “Aqui no Pinhão temos um terreiro de umbanda, sim, mas nossos frequentadores vêm de outros municípios. Mas muitas pessoas daqui me procuram para saber mais sobre a nossa religião, mas acho que tem receio de frequentar”. E vai além na observação que faz.

Pra mim, a intolerância religiosa não está presente apenas na violência, mas ela acontece silenciosamente quando ignoramos a existência desses valores. Quando não se fala sobre esse tema. Ou quando se diz que ‘fulano’ que tem posses frequenta um terreiro, como se a nossa religião congregasse apenas pessoas pobres e marginalizadas. Mas somos todos filhos de Deus.

DIA NACIONAL

(Foto: Divulgação)

A Lei n.º 11.635, de 27 de dezembro de 2007, instituiu o dia 21 de janeiro como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. No entanto, a data marca a morte da Yalorixá ‘Mãe Gilda’, fundadora do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, nas imediações da Lagoa do Abaeté, bairro de Itapuã em Salvador (BA).

Após sofrer uma campanha de difamação, de intolerância, perseguições e agressões físicas e verbais, em 2000 ela sofreu um infarto fulminante. Antes, porém, ela teve o ‘terreiro’ invadido por adeptos de igrejas evangélicas e neopetencostais.

A luta por justiça se estendeu durante anos. Hoje o busto de ‘Mae Gilda’ esta presente na Lagoa do Abaeté, mas também já foi alvo de vandalismo. Conforme ‘Pai Nil,’ a luta contra a intolerância é diária.

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Cristina Esteche

Jornalista

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