22/08/2023
Cotidiano

A lembrança dos antigos carnavais

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Familiares de Bento José da Silva retornam ao Clube para escrever mais uma página dessa história

As marchinhas dos antigos carnavais não ecoam mais pelo salão, fazendo com que arlequins as colombinas não passem de fantasias nas lembranças dos descendentes do patriarca José Bento da Silva, um dos fundadores do Clube Rio Branco em Guarapuava.
Clube típico da comunidade negra, a sociedade que marcou época no Carnaval guarapuavano há tempos se cala, mas as famílias Freitas e Silva marcaram um encontro neste sábado, dia 21, para trazer no presente as recordações do passado, e o local não poderia ser outro: o Rio Branco.
É o II Epa Freitas! um evento idealizado em 2008 para reunir a família Freitas, um braço da descendência de Bento José da Silva, filho do escravo de propriedade do Visconde de Guarapuava, Campolim de Sá Camargo. Neste ano o encontro será ampliado com membros da família Silva, filhos, netos, bisnetos de Bento.
“Queremos reunir esse braço da família do meu avô para que os mais novos saibam um pouco mais sobre a história da nossa família, sobre o Rio Branco”, diz Josoel de Freitas Filho, um dos organizadores do encontro.
“Nosso avô teve um papel fundamental, social e culturalmente em Guarapuava, e é pouco lembrado. Quase ninguém conhece a sua história; poucos sabem do histórico do Rio Branco. Nem mesmo as faculdades se interessam em recuperar essa memória e cabe a nós, seus descendentes lutar por isso. É uma história que está sendo passada de geração em geração dentro da nossa família e que hoje está viva no meu tio, Josoel, conhecido como Tuto”, comenta o percussionista Orlando Silva.
Ele elogia a iniciativa do primo Josoel Filho. “Meu primo foi muito feliz em ter essa idéia de reunir os membros das famílias Freitas e Silva. É um resgate dos nossos antepassados”, reconhece.
Bento José da Silva era remanescente da senzala, cujos resquícios podem ser conhecidos atrás do Museu Visconde de Guarapuava. Filho do escravo Campolim e da escrava Leocádia, desde cedo conquistou Antonio de Sá Camargo, o Visconde de Guarapuava. Foi por ordem deste que Bento estudou no Colégio de Padres, uma tradicional instituição de ensino da época.
Místico, formado pelo Centro Esotérico do Rio de Janeiro, Bento também tinha habilidades musicais: tocava violão, trombone e baixa tuba. Foi fundador da banda Os Maragatos junto com o professor Gabriel Hugo Rios, o primeiro professor negro de Guarapuava , Manoel Conrado, entre outros.
Pessoa com influência na sociedade guarapuavana, Bento José da Silva, foi um dos fundadores do Clube Rio Branco. A idéia de criar uma sociedade tipicamente negra surgiu entre os anos de 1916 e 1918 com as lavadeiras que lavavam roupas nos córregos e chafarizes no entorno do atual terminal de trans-porte coletivo “Estação da Fonte”.
Lideradas por Leocá-dia Maria do Belém, primeira esposa de Bento, as lavadeiras promoviam festas religiosas em homenagem a São Benedito e Nossa Senhora da Boa Saúde. “A intenção dessas festas era reunir dinheiro para que criassem uma sociedade onde pudessem se reunir”, conta Sahara Freitas, esposa de Josoel Filho e que está recuperando a história da família pela oralidade dos mais antigos.
Aderindo à idéia das mulheres, Bento, por meio do seu conhecimento com políticos da época, conseguiu um terreno e com contribuições fundou o Clube. A primeira diretoria era composta por Bento José da Silva, Gabriel Hugo Rios, Manoel Conrado e a esposa Luisa Beralda, Manoel Calota.
“Logo no inicio ocorreu uma discórdia entre os associados e parte do grupo formou outra associação chamada de Celetro, que não durou muito, ocorrendo em seguida o retorno dos sócios para o Rio Branco”, relata Sahara.
A relação do Rio Branco com o Carnaval de Guarapuava é muito estreita. Nas décadas de 20, 30 e 40, sobre a liderança de Bento José da Silva, o Clube desfilava com os corsos carnavalescos pelas ruas de Guarapuava. Os preparativos começavam cedo com as mulheres confeccionando as “laranjinhas” (bolinhas com água de cheiro) para as “guerras” na rua. Havia também a “guerra” de talco. Os ensaios das músicas carnavalescas eram realizados nos piqueniques, onde todos aprendiam as músicas que cantariam no salão.
No clube também ocorriam os ensaios de peças teatrais, posteriormente encenados no Teatro Santo Antonio, entre elas A Cabana do Pai Tomás e a Escrava Isaura. O elenco era composto por associados do Rio Branco, que nesse período somavam mais ou menos 500 pessoas.
No ano de 1944 Josoel de Freitas, filho de Bento José da Silva e Brasilícia Alves de Freitas, segunda esposa, era o chapeleiro do clube. Foi nesse período teve início a integração da sociedade, quando os clubes se visitavam durante os bailes de carnavalescos.

Foto: Bento José em evento no Rio Branco

As escolas de samba
Na década de 60, então com os filhos de Bento – Josoel e Setembrino – foi criada a primeira escola de samba do Clube Rio Branco, a Vou Ali e Volto Já, que teve a participação também dos músicos Paraqueda, Charuto, Sabará, entre outros. Posteriormente, essa escola teve outros nomes: Anjos do Inferno e Príncipes do Ritmo, contando com mais de 150 ritmistas na bateria. Os maiores foliões foram o cozinheiro Jair Machado e Manoel Rovedo.
Na década de 80, Setembrino e o filho Orlando tentam reativar o carnaval de rua na cidade, envolvendo os outros clubes sociais da cidade. Foram apenas dois anos consecutivos para cair novamente no esquecimento.
Com o passar do tempo, o Clube teve a sua história desviada. Transformou-se num bailão. Para reverter essa distorção, Tuto, Orlando Silva e outros associados, há mais de 10 anos a transformaram numa sociedade recreativa, cultural e beneficente, declarada de utilidade pública, passando a sediar uma escola de capoeira para crianças e jovens de baixo poder aquisitivo. O trabalho não teve continuidade e o Clube passou a ser uma academia de musculação terceirizada e, posteriormente, outro bailão. Por último, foi alugado para uma empresa de eventos. O valor do aluguel, porém, passou a beneficiar apenas uma família.
Recentemente, Tuto, Orlando Silva e outros associados, elegeram nova diretoria, hoje sob a presidência de Jairo Machado, e recuperaram o Clube a partir de intervenção judicial. “Vamos fazer o Rio Branco cumprir o seu propósito”, afirma Josoel Filho. “O espaço criado por nosso avô e que durante muito tempo esteve nas mãos da nossa família vai voltar a ser dos negros. Vamos resgatar essa história na prática”, diz Orlando Silva, que hoje é vice-presidente do Rio Branco.
“Meu pai me pediu a continuidade dessa história e vou fazer isso. O Rio Branco voltará a ser dos negros”, confirma Josoel Filho.

Cristina Esteche

Jornalista

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