22/08/2023

A luta dentro e fora da cadeia

Ainda tenho cravadas na minha mente as imagens que presenciei durante o motim dos presos da cadeia de Guarapuava. A sensação é estranha. É um sentimento de solidariedade para com aquelas mulheres, filhas, esposas, mães, irmãs que estavam agoniadas do outro lado do muro da 14ª Subdivisão Policial em busca de noticias do lado de lá.

Deparei-me  com o desespero de mães, com as lágrimas rolando na face de muitas delas fazendo “mea culpa” pelo ato do filho que foi pego traficando drogas; encarei  esposas, filhas, fazendo parte de um submundo que a maioria da sociedade desconhece. Vivi, por horas, uma realidade, mesmo estando à margem, apenas registrando, observando, tentando entender a vida de meninas, por exemplo, com idade entre 15 e 18 anos, que convivem com ladrões, homicidas, “donos” do tráfico, quadrilheiros, cuja cumplicidade se resume no amor que sentem por aqueles homens trancafiados entre quatro paredes pelos crimes que cometerem.

A luta, dentro e fora, da cadeia era a mesma: reivindicações por melhorias; transferência de presos para as cidades de origem; maior agilidade nos processos;  esvaziamento das celas superlotadas onde até 10 homens se empilham uns sobre os outros; comida que não seja azeda; mas acima de tudo, respeito. Se as mulheres  pediam  tratamento adequado a quem está preso; estes, por sua vez,  também pediam que suas mulheres e crianças sejam tratadas com dignidade. “A gente vem para a visita e é obrigada a ficar nua, ficar agachada na frente dos nossos e dos filhos dos outros. Eu não tenho culpa do crime que o meu filho cometeu. Somos tratadas como marginais”, reclamou uma senhora com o rosto banhado em lágrimas.

“No dia da visita chego aqui às 5 horas da manhã para ser a primeira a entrar e ficar mais tempo junto com ele”, disse outra. “Amor, estou aqui”, gritava uma menina de 18 anos na esperança que seu esposo a escutasse. “Moça, tem como dar um jeito pra eu ver o meu marido?” questionou uma adolescente de 15 anos que é impedida de visitar o companheiro por causa da idade. Ela diz que não vê a hora de completar 16 anos para poder se casar. “Mas ainda é em setembro”, afirmou em seu desconsolo. “Ele só tem eu aqui”, disse inconformada. Ö dia de visita precisa mudar para o dmingo porque tarbalhamos para dar comida aos nossos filhos", pediam muitas.

Junto às mulheres que entraram noite à dentro na mobilização, estavam crianças. Filhos que nascem e crescem num mundo desigual em todos os sentidos. Acredito sim que o homem é um produto do meio, de um sistema que exclui,  que gera a injustiça social, que joga famílias inteiras ao abismo. Uma diferença social e econômica aliada a uma crise de identidade individual que joga homens e mulheres à marginalidade social, fazendo aumentar a violência transfigurada, numa indiferença pelas condições de vida imposta às pessoas. Imposta, sim. Porque vi uma mãe com mais de 60 anos, com padrão médio de vida, falar na gíria da cadeia pra entender a “vida” que o filho passou a levar atrás das grades. Essa senhora se igualou a mulheres que vivem no imundo mundo do crime, que fazem parte dele, como uma jovem que está com a mãe presa por tráfico de drogas, como outra mulher cujo esposo e cunhados estão presos também pela venda de crack. “Eu sei tudo como funciona lá dentro porque eu já estive presa em Cascavel”, disse com a maior naturalidade. Nessa rede até parece que aquela tiver o maior tempo de cadeia, vale o respeito das demais.  Todas, ou melhor, quase todas tem uma história criminosa para contar, assim, escancaradamente, na frente dos filhos.

Com isso, as elites da sociedade protegem-se atrás de muros e grades, circuitos internos e vigilância particular em suas propriedades, em seus lares, que estão à mercê de serem invadidas pela desigualdade social. É a busca de algo que falta à sua condição desesperada, invisível.

A estas alturas preciso dizer que não sou favorável ao crime, nem estou fazendo o papel de “advogada do diabo”, mesmo porque tenho um conceito muito diferenciado dessa figura mítica. Preciso registrar essa angústia porque a voz do povo é rouca, quase afônica, que não ultrapassa os  baixos muros de pilares de concreto que cercam a cadeia. O eco esbarra nos parcos fios de arame farpado fincados no alto. Se há pessoas condenadas que ainda não tiveram o direito de serem transferidas para o sistema penitenciário, se outros há meses aguardam para serem ouvidos em audiências, temos em Guarapuava dois cursos de Direito e centenas de advogados que poderiam cumprir a responsabilidade social da profissão.  Temos a subseção da Ordem dos Advogados do Brasil; mas não temos uma Defensoria Pública.

Enquanto isso, mais e mais mulheres; mais e mais crianças continuarão saindo dos becos que circundam a cidade para gritar pela vida de seus homens, de seus pais, de seu filhos, de seus irmãos. E nós, que fazemos parte de uma parcela da dita cuja sociedade, vamos continuar sendo reféns de uma falha que também é nossa, vamos continuar encurralados pelo que existe nos quatro cantos da cidade e que não se resume nas histórias de vida que existem em cada um que superlota e desnuda a fragilidade da cadeia. É muito mais, é muito maior. É como se fosse uma teia de aranha pronta para nos aprisionar a qualquer momento. Ou melhor, somos aprisionando no nosso dia a dia, embora não tenhamos nos dado conta disso.

 

 

Cristina Esteche

Jornalista

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