22/08/2023
Blog da Cris Guarapuava

Bruxas não se calam, acendem o verbo

A fogueira que queimava as 'bruxas' era alimentada por medo, mas também por cálculo: eliminar a mulher autônoma, dona do próprio nariz

Bruxas contemporâneas (Foto: Reprodução)

Neste 31 de outubro, as vitrines se enchem de abóboras, caveiras, chapéus pontudos e máscaras de bruxas. Crianças se fantasiam, adultos celebram festas temáticas, e o Halloween se consolida como uma data que mistura cultura pop, comércio e tradição. Mas por trás dos trajes caricatos e da estética sombria, esconde-se uma história muito mais profunda e brutal. Uma história de perseguição, misoginia e controle.

A figura da bruxa, hoje celebrada com certo humor, foi durante séculos o símbolo de tudo o que precisava ser silenciado: mulheres sábias, curandeiras, parteiras, místicas, rebeldes. Mulheres que escapavam da lógica patriarcal, que ousavam existir fora das normas sociais e religiosas, foram brutalmente perseguidas, torturadas e executadas em nome da ordem moral e divina. E o mais perturbador: isso não é apenas um episódio sombrio do passado, mas um mecanismo que, em novas roupagens, ainda persiste.

CAÇA ÀS BRUXAS

Entre os séculos XV e XVIII, milhares de mulheres, principalmente camponesas, foram acusadas de bruxaria na Europa e também nas Américas coloniais. Estima-se que entre 75% a 85% das pessoas perseguidas eram mulheres. O crime? Ter saberes sobre ervas, ajudar outras mulheres a parirem, não se submeter ao casamento, não ter filhos, ou simplesmente ser ‘estranha demais’.

O fenômeno não foi apenas religioso ou supersticioso. Como apontam estudiosas como Silvia Federici, a caça às bruxas foi um instrumento político e econômico de disciplinamento dos corpos femininos durante a transição para o capitalismo. Ao transformar o corpo da mulher em território de vigilância e repressão, o patriarcado impôs novos modos de exploração: trabalho reprodutivo gratuito, submissão à autoridade masculina e destruição dos vínculos comunitários entre mulheres.

A fogueira que queimava as “bruxas” era alimentada por medo, mas também por cálculo: eliminar a mulher autônoma era fundamental para consolidar a família patriarcal, a moral cristã e a nova economia nascente.

MISOGINIA TRAVESTIDA DE JUSTIÇA

A bruxa foi, por muito tempo, o oposto da “boa mulher”: bela, recatada, do lar, submissa, invisível. Ela era a indomável, a que conhecia o corpo, a que não pedia permissão. Por isso, precisava ser neutralizada. A perseguição se dava em nome da pureza, da justiça, da salvação — mas os métodos eram cruéis, públicos e sistemáticos.

O mais assustador é reconhecer como esses mecanismos de controle simbólico e físico ainda operam no mundo contemporâneo. Quando uma mulher é julgada por sua roupa, sua liberdade sexual ou sua escolha de não ser mãe, o eco da fogueira ainda crepita. Quando direitos sexuais e reprodutivos são atacados, ou quando a violência institucional tenta deslegitimar vozes femininas, o projeto de silenciamento se renova.

RESGATE E RESISTÊNCIA

Mas há também outra narrativa possível. Nos últimos anos, a bruxa foi resgatada como símbolo de resistência, sabedoria e liberdade. A bruxa contemporânea é aquela que conhece o próprio corpo, a ancestralidade, as raízes. É a que se recusa a se calar. O feminismo ressignificou essa imagem, transformando-a em força e ruptura.

Neste sentido, o Dia das Bruxas pode (e deve) ser mais do que uma data decorativa: pode ser um convite à memória crítica. Um lembrete de que as fogueiras podem mudar de forma, mas ainda queimam nas redes sociais, nos gabinetes políticos, nos sistemas de justiça seletiva.

Celebrar o Halloween, portanto, não precisa ser um ato alienado. Pode ser um gesto consciente. Um espaço de denúncia, de reflexão e de fortalecimento de vínculos entre mulheres que, como as de ontem, resistem às novas formas de opressão.

Porque toda vez que uma mulher ousa ser livre, a bruxa ressurge. E desta vez, não vai para a fogueira, vai para a luta.

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Cristina Esteche

Jornalista

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