22/08/2023
Brasil

Carta aberta ao juiz que considera assédio em ônibus ato ‘de menor potencial ofensivo’

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Olá, doutor José Eugenio do Amaral Souza Neto, tudo bem?

Não nos conhecemos, mas gostaria de ter uma conversa franca com o senhor.

Acredito que o Excelentíssimo tenha faltado ou estava distraído em algumas aulas da escola e principalmente da vida. Por isso, venho por meio desta disponibilizar um pouco do meu tempo para explicar o que significa constrangimento. Substantivo masculino, a palavra representa pressão exercida sobre alguém; estado de quem não se sente à vontade; acanhamento; inibição; circunstância vergonhosa; situação de completo embaraço; vexame. Essas definições você encontra facilmente em um dicionário, porém, vou te ensinar didaticamente o que essa palavra significa no nosso dia a dia.

CONSTRANGIMENTO é você passar parte da sua adolescência se escondendo atrás de roupas largas por se achar culpada em ter um maníaco sexual te perseguindo e te ligando no trabalho diariamente durante meses;

EMBARAÇO é você ter que descer de um ônibus no meio do nada fugindo de um cara que se masturba enquanto olha para você;

VERGONHA é você pedir para alguém ir embora da sua casa logo após ele te "encoxar" enquanto você lavava a louça e na sequência rezar para que ele não contasse para ninguém, pois você certamente seria a responsável;

DESCONFORTÁVEL é você ter que inventar namorados e maridos em várias situações para fugir de cantadas nada educadas e agradáveis;

VIOLÊNCIA é você ter que descer correndo de um táxi às 3 horas da madrugada, em plena Avenida Santo Amaro fugindo de um motorista que tentou passar a mão nas suas pernas;

ACANHAMENTO é você perceber que várias pessoas ao redor estão te julgando e comentando que a culpa era do tamanho da sua saia;

COERÇÃO é você ter que medir sempre as suas atitudes diante dos homens porque se você é educada demais, até mesmo enquanto pede um orçamento para um tapeceiro, você está dando mole e a cantada barata é cortesia da casa;

AMEAÇA é você ter medo de entrar em um elevador com um completo estranho;

OPRESSÃO é você ter que mudar a hospedagem da sua viagem porque dormir em quarto compartilhado em um hostel é quase um convite ao abuso;

AFLIÇÃO é você ter receio de andar sozinha na rua à noite apenas pelo fato de ser mulher;

MAL-ESTAR é você assumir instintivamente uma atitude violenta toda vez que alguém esbarra em você em um bar ou em um ônibus;

ABORRECIMENTO é você lidar com esse tipo de coisa diariamente, e muitas situações passarem despercebidas porque a gente já se acostumou a viver assim. Afinal, "somos frutos de uma geração que aprendeu, erradamente, que atitudes machistas, invasivas e abusivas podem ser disfarçadas de brincadeiras ou piadas" né, Zé Mayer?

DESESPERO é agradecer diariamente por nunca ter te acontecido nada pior.

Caro doutor José, desculpe pela demora em escrever esta carta, mas é que eu estava tentando digerir o seu discurso, mas confesso que ele é intragável assim como a desculpa acima.

Ao contrário de muita coisa que li na internet, não te desejo mal e muito menos para as mulheres presentes na sua vida; afinal, tenho certeza que elas são minhas companheiras nessa luta diária por sobrevivência.

Desejo que o senhor tenha serenidade, discernimento e principalmente responsabilidade em todos os seus atos profissionais, pois eles não refletem apenas na vida do Diego, da Clara, da Juliana e de outras.

Os reflexos se estendem por toda a sociedade.

Atenciosamente,

Juliane.

(Texto originalmente publicado no HuffPost Brasil)

Cristina Esteche

Jornalista

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