22/08/2023
Blog da Cris Guarapuava

Com qual pé se entra no delírio?

A metáfora virou crime, o chinelo virou ameaça, e o país... bom, o país continua descalço de interpretação

Pés (Foto: reprodução /Freepik)

Sempre amei andar descalço. Sentir a terra fria de manhã, o pó quente da tarde, a textura do mundo real sob os pés. Não por rebeldia, mas porque há sabedoria no contato direto com a realidade. O pé descalço entende quando o solo é firme, quando há pedra escondida ou quando a areia acolhe. Há uma pedagogia silenciosa na pisada livre.

Por isso me incomoda menos a sandália… e mais o caminho que escolhemos calçar.

Gosto de quem entra com os dois pés… na festa, no erro, no afeto, no problema. Gente que não calcula tanto o chão, mas assume a pisada, mesmo que torta. Por isso espanta essa obsessão recente com o pé “certo” para começar o ano. Como se a vida dependesse de qual lado entra primeiro. Como se o gesto mais banal precisasse seguir protocolo moral.

De repente, o país escuta numa frase uma convocação, vê numa metáfora uma ameaça.
Lê tudo como quem examina bula de remédio. Ou seja: em busca do efeito colateral.
A metáfora virou ofensa.
A ironia, doutrinação.
O gesto simbólico, um atentado à ordem imaginária.

Tem gente vendo provocação onde há poesia.
Vendo militância onde só há rima.
Vendo guerra cultural até no modo de calçar o verão.

É fascinante…  e exaustivo.

Num país com crateras abertas como a fome, desinformação, exclusão, o escândalo da vez é uma frase solta, uma imagem com cores demais, um chinelo dito na hora errada. Tudo vira trincheira. Até o pé. Há quem entre no ano com os dois pés na jaca, mas exija dos outros que entrem com o direito. Tipo assim: alinhado, consagrado e em silêncio.

No meio disso tudo surge um vereador de Guarapuava. Não como personagem central da história, mas como metáfora ambulantenuma loja qualquer da cidade. Um homem público que não causa espanto, apenas confirma a paisagem: a de um país onde o cargo pesa menos que a pose, onde a representação se confunde com performance e onde o senso de ridículo foi anestesiado pelo aplauso fácil. Não há crime em aparecer. O vazio está em não perceber o contexto. O ridículo não está no ato, mas na incapacidade de entender o palco em que se pisa, como quem caminha descalço sobre concreto achando que ainda é terra.

O PROBLEMA NÃO É O CALÇADO!

O problema não é o calçado.
É o delírio da interpretação.

Tudo virou bandeira.
Toda fala, ameaça.
Todo gesto, discurso.
Toda sandália, sintoma.

E no fim, o que se perde é o chão.

Porque quando deixamos de senti‑lo, perdemos também o senso de limite, de medida, de proporção. A democracia exige pés atentos. Mas seguimos andando, confortáveis, distraídos, como se não houvesse pedras à frente.

O problema nunca foi o chinelo.
Foi o país que parou de olhar para baixo e perceber que o chão, esse sim, está rachando.

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Cristina Esteche

Jornalista

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