22/08/2023
Cotidiano Guarapuava

Eles se tornam tornam visíveis só depois que a noite cai

Portal RSN e Amor e Atitude se unem para amenizar sofrimento de quem vive em situação de rua

destaque amor

A invisibilidade social (Foto: Amor e Atitude)

Nem bem a noite cai sobre a cidade eles começam a sair de suas ‘tocas’. São seres humanos, mas protagonistas da invisibilidade social. Passam frio, fome, sede de políticas públicas, saudades da família. Alguns deles, até vergonha da condição miserável de um retrato cruel da miséria social que se aprofunda em diversos ramos da esfera pública.

“Moça eu não sou morador de rua. Sou um trabalhador, desempregado e sem oportunidades que se vê nesta situação”. Assim se enxerga um homem que diz ter vindo de Chopinzinho em busca de trabalho. Sem conseguir nada ele quer ir a Curitiba onde moram seus filhos.

A gente tá perdendo prum bichinho chamado joão-de-barro, porque não tem mais casa pra morar

Ele é apenas um em meio a dezenas de pessoas, principalmente, homens jovens, que estão em situação de rua em Guarapuava. “Temos mais ou menos umas 30 pessoas. Mas eles vão e vem com muita frequência. Então não dá para ter um número exato”, disse Marcio, do projeto Amor e Atitude.

Aliás, foi com voluntários do projeto que a reportagem do Portal RSN saiu para “quebrar o gelo” da noite guarapuavana. Cobertores, acolchoados, roupas e calçados arrecadados pela campanha anual do Portal aquecem os corpos fragilizados, muitos deles, doentes.

“Moça, eu sou daqui mesmo, mas por ser meio louco sou considerado a ovelha negra da família. Na casa não tem espaço pra mim. Então a rua me acolheu”, diz um jovem de 23 anos.

A alegria de receber a comida quentinha das mãos de uma crianças (Foto: Amor e Atitude)

Entretanto, o nada que possuem se transforma em tudo quando o verbo conjugado é a solidariedade. “Olha ali naquele mato tem um velhinho deitado a tarde inteira. Temos que levar marmita e coberta para ele”, diz Eduardo, que também divide o espaço debaixo de uma marquise. Fica ali em frente a Rodoviária Municipal.

Todavia, contar outras histórias é repetir causas e efeitos. Porém, não tem como não falar num senhor que vai chegando devagar, apoiado em duas muletas. “Ele está assim porque tentou atropelar um motociclista”, brinca um dos companheiros de agruras. “Guarda uma marmita e cobertas porque ele também precisa comer”, diz outro, enquanto dois trazem o senhor nos braços.

ENCONTRO EMOCIONADO

Crianças, jovens e adultos carregando sacolas com agasalhos e caixa de isopor com marmitas se misturam aos moradores em situação de rua.

A humildade, a solidariedade, o altruísmo, o amor ao próximo exterminam o preconceito. Durante as conversas, as novidades do reencontro semanal, um diálogo chama a atenção, emociona.

Duda, uma adolescente voluntária do projeto Amor e Atitude, é surpreendida por perguntas feitas por um dos jovens que estão no local. Ao final das respostas, a revelação de que ambos são primos.

“Eu conheci ela bem pequena”, diz Eduardo. “Eu fiquei preso durante 15 anos por tráfico de drogas, associação de tráfico e homicídio. Então ela não lembrava de mim”.

De acordo com Duda, o outro irmão do primo está preso por homicídio – “ele também tentou matar o pai” – e a mãe de ambos morreu recentemente de câncer de mama.

O agradecimento pela comida e pelo cobertor (Foto: Amor e Atitude)

“O MEU PRÓPRIO PROJETO”

Eduardo foi preso logo após ter completado 18 anos. Casado, pai de dois filhos, cumpriu a pena e hoje busca se redimir ajudando o próximo.

É ele que recebe quem chega, ajuda a distribuir comida e roupas. Sabe a história e a necessidade de cada um. “O meu projeto sou eu”.

Eduardo não se considera em situação de rua, embora não tem uma casa pra chamar de sua. “Um dia durma num tido, outro na casa da ex-mulher. Mas a maior parte da semana estou aqui, dormindo com meus companheiros”.

A intenção de Eduardo é conscientizar os demais sobre a necessidade de deixar dos vícios, retornar para casa. “Faço isso quando estão sóbrios. Se me ouvem, não sei. Mas só sei que eu estou fazendo a minha parte”.

E é assim, compartilhando dores, decepções, enredos de histórias nas quais só mudam os personagens que a noite serve como cenário.

E enquanto eles, então de barriga cheia, se acomodam numa “cama coletiva”, a noite segue fria, mas repleta de calor humano, esperança e solidariedade. “Ah! A gente volta pra casa com o coração aquecido. Com a certeza de ter demonstrado o nosso amor incondicional ao nosso próximo”, diz Marcio.

Cristina Esteche

Jornalista

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