22/08/2023
Brasil

Especialistas garantem que o Brasil virou o país do textão nas redes sociais

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Por Emiliano Urbim para O Globo

Enquanto você lê estas linhas, alguém com certeza está postando em algum canto da internet milhares de caracteres a respeito de uma polêmica recente (ou permanente). Escrito enquanto o assunto está quente, o artigo será longo, opinativo e pessoal – mas transferível, buscando a identificação e a empatia do leitor. Provavelmente digitado em horas vagas, será um conteúdo feito “no amor”, sem esperar nada em troca – a não ser, claro, comentários, curtidas e compartilhamentos. Se a obra viralizar, deve render uma réplica, uma tréplica e assim por diante. Até a próxima polêmica, que vai proporcionar um novo texto. Ou, para usar o termo mais do que consagrado, um textão.

Especialistas garantem, e basta dar uma passada d’olhos nas redes sociais para concordar: o Brasil virou o país do textão. Fosse um esporte olímpico, poderia ter garantido algumas medalhas extras para a delegação brasileira.

O formato se popularizou durante os protestos de 2013, ganhou peso político nas eleições presidenciais de 2014 e agora, com a combinação de Jogos Olímpicos, impeachment e eleições municipais, parece ter atingido o auge – ou a saturação. Por via das dúvidas, quem escreve o seu põe uma advertência no início: “Senta que lá vem textão.”

Já há inclusive memes populares pedindo sua extinção e ridicularizando sua suposta relevância. Como não podia deixar de ser, existem até textões contra os textões. Bia Granja, fundadora do site youPIX, que esta semana organizou o evento youPIX Con, teme que a liberdade de expressão possa estar nos deixando menos tolerantes.

‘A internet nos deu voz, audiência, e agora tudo o que queremos é ter opinião formada sobre tudo e fazer um textão sobre isso’, diz Bia Granja.

"A internet nos deu voz, audiência, e agora tudo o que queremos é ter opinião formada sobre tudo e fazer um textão sobre isso. Uma coisa tremendamente incrível, não fosse um pequeno porém… Ao mesmo tempo em que exercitamos nossa livre opinião, ficamos cada vez menos tolerantes com a opinião alheia. Passamos o dia lendo posts que nos incomodam, e no fim da tarde nos vemos extremamente fatigados sem saber o motivo."

Nem todo textão é sobre grandes temas, e nem é tão grande assim. Segundo quem entende de debates virtuais, o que acontece é que o clima geral de polarização política acaba abrindo espaço para discussões sobre gênero, racismo e pobreza, mas também sobre felicidade no trabalho, educação dos filhos, histórias de vida. Lado a lado (ou empilhados na mesma timeline), convivem o papo sério do tipo “Precisamos falar sobre violência policial” e a crônica cotidiana no estilo “O que aprendi após um ano lavando a louça em um albergue”. (Ambos são exemplos de textos hipotéticos, mas uma busca no Google certamente trará títulos bem próximos.)

E é curioso: tudo vem por escrito. Frase após frase, parágrafo após parágrafo, coisa que os profetas digitais diziam que seria impossível em 2016. Não era para todo mundo estar pondo foto no Instagram, subindo vídeo no YouTube, fazendo o que quer que os jovens façam no Snapchat?

Para Fabio Malini, professor do laboratório de cibercultura da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), o textão existe porque o debate via texto nunca morreu, só foi mudando de plataforma – inclusive após a disseminação da internet. Pontuando pelas eleições presidenciais recentes: em 2002, as brigas eram em listas de e-mail; em 2006, no Orkut. Em 2014, chegaram ao Facebook, onde gatos e bebês cederam espaço para narrativas empoderadas. Observando este trajeto, Malini vê a continuidade de uma tradição universal e brasileira.

— A palavra escrita tem uma força, uma capacidade de reposicionar sentidos, que a imagem não tem. O ser humano tem uma necessidade de contar histórias. Tem gente que faz da sua vida uma narrativa, fala de si mesmo de uma maneira interessante, isso está inscrito na alma brasileira — diz Malini. — Tradicionalmente, o espaço para esse tipo de manifestação se dava na imprensa, nas crônicas. Hoje, há público para esse tipo de texto na internet, as pessoas usam seus perfis nas redes sociais como colunas de jornal.

Além da demanda natural do público, outro combustível para a produção do textão é uma certa necessidade de aprovação. O professor Fabio Malini, da Universidade Federal do Espírito Santo, explica que, em certa medida, todos nós que estamos em redes sociais criamos estratégias de manutenção do nosso público. Quando a pessoa sente que pode bombar na vida social virtual através da escrita, também começa a jogar para essa torcida, investindo em assuntos que dão ibope.

— Quem é monotemático é mais rapidamente visto. Se você se dedica a um tema, a tendência é que você passe a ser lido como alguém que é especialista naquele assunto. Mesmo quem não é profissional da escrita vai aprendendo a ter um certo estilo, um certo maneirismo. Procurando, você encontra textão legal em que um engenheiro explica a crise hídrica — diz Malini, chamando a atenção para um traço característico deste emergente gênero literário. — Essa autoconfiança do autor, reforçada pelo público, faz com que o textão tenha esse lado de evangelização, um tom meio pastoral. Às vezes, quem lê percebe que está sendo conduzido demais e reage.

CULTURA DO REVIDE

Montagem ironiza textão nas redes sociais (Foto: Reprodução)

Responsável no Brasil pelo Medium — rede voltada para textos longos – , Leandro Demori já identificou um roteiro comum na trajetória de artigos polêmicos que viralizam. Demori compara o textão a uma viagem de avião. Primeiro, a aeronave decola (o post tem milhares de leitores). Depois, uma das turbinas falha (começam as críticas). O piloto então tenta estabilizar o avião (o autor se defende). Enquanto isso, metade dos passageiros tenta ajudar e a outra metade se amontoa do lado da turbina defeituosa, para derrubar o avião (rola o bate-rebate). O piloto baixa a altitude à espera de calmaria (o autor fica off-line por uns tempos) e, ao final, há dois desfechos possíveis: ou o avião cai (desculpas constrangedoras do autor) ou o piloto despeja os discordantes no mar e segue viagem com quem ficou ao seu lado (o autor segue escrevendo para seus novos fãs).

Demori, envolvido em debates virtuais desde que fazia parte do blog político Nova Corja, na década passada, também observa uma certa fórmula de sucesso para os textões: contrariar o senso comum.

A viralização costuma vir atrelada a um viés polêmico, impertinente, fora do padrão. Pode ser a desconstrução de um mito, como o post de Izzy Nobre que expôs contradições na trajetória da empreendora Bel Pesce. Pode ser um depoimento como o de Felipe Silva, que no texto “Pobreza, honestidade e perseverança” fala de sua improvável trajetória de faxineiro morador de comunidade a publicitário premiado em Cannes. Pode ser um manifesto como o da ativista Stephanie Ribeiro, que graças à repercussão do textão “Eu não perdoo Fernanda Torres” fechou contrato com a editora Companhia das Letras para publicar seu primeiro livro – por enquanto, o que se desenha é um romance com uma protagonista jovem e negra, assim como ela.

"Muita gente achou, por causa do texto, que eu estava com raiva da Fernanda Torres. Mas a questão não é a Fernanda. A questão é que, graças à internet, qualquer um tem um espaço para difundir a sua opinião, e tem pessoas que não lidam bem com isso", diz Stephanie.

Em todos esses casos diversos, há um traço em comum que passa despercebido, de tão padronizado que se tornou. Todo textão de sucesso é em primeira pessoa, ou seja, alguém contando algo que viveu ou dando seu ponto de vista para um fato qualquer. Para Demori, do Medium, isso é outra característica do textão:

"São relatos pessoais, que eram a regra antigamente, e voltaram à tona. O distanciamento da terceira pessoa, que foi o padrão durante o século XX e ainda o que rege o jornalismo, não é obrigatório nos textões. Até porque aquilo ali não é jornalismo, não há checagem, não há outro lado. Vejo como manifestação pessoal."

‘Quem escreve na internet está sendo questionado por coisas que nunca imaginou que seria’, diz Larissa Magrisso, vice-presidente de conteúdo da agência W3Haus. 

Essa “outra coisa” é o que Larissa  considera o mais rico nos textões. Apesar de concordar que há um certo viés de confirmação entre autores e leitores (um reforçando as opiniões dos outros), também acredita que existe, sim, uma possibilidade real para um debate à moda antiga, com tese, antítese e síntese.

"Todo mundo sabe que o Facebook tende a nos isolar em bolhas. Tem até uma piada que circula em que uma pessoa elogia um post dizendo: “Nossa, que ótimo seu texto, falou tudo o que eu penso” – diz. "Ao mesmo tempo, você pode não ter paciência para réplicas e tréplicas de textões. Mas se for parar para ler, vai ver que as pessoas estão discutindo profundamente sobre racismo, sobre feminismo, sobre política. Vai um pouco além daquele senso comum que diz que na internet só tem bobagem. É mais do que um monte de gente vaidosa querendo falar uma coisa e aparecer."

Larissa, da agência W3Haus, também destaca o que considera um aspecto positivo da “cultura do revide” que impera nas redes:

"Quem escreve na internet está sendo questionado por coisas que nunca imaginou que seria. Inclusive, vai continuar sendo questionado daqui a muitos anos, porque é praticamente impossível apagar uma coisa que foi publicada na rede. Agora, os textos não são mais uma via de mão única. As coisas são desconstruídas e reconstruídas."

LÁ VEM MAIS TEXTÃO

Campanha pede que internauta pense antes de escrever (Foto: Reprodução)

Os números do Medium, rede criada pelo Twitter para os autores de textos longos, não deixam dúvida: se o textão é um nicho, é um nicho em crescimento. Posts de sucesso em português atingem entre 400 mil e 500 mil leitores – a longa desconstrução de Bel Pesce (“A Menina do Vale”) foi lido até o final por 1 milhão. Em dois anos, a rede passou de 8 milhões para 35 milhões de usuários. Outro dado: o índice de leitura é alto entre os textos curtos, cai entre os médios e volta a crescer entre textos longos.

"É um pessoal que gosta de ler mesmo, comenta e contribui nos textos dos outros. Encontrou ali a sua rede social ", diz Demori.

Um dos acadêmicos brasileiros mais conhecidos no estudo da cultura digital, Ronaldo Lemos vê os textões como um fenômeno positivo. Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e pesquisador do MIT Media Lab no Brasil, ele afirma:

"Cada vez que eu vejo um textão, fico feliz. É um termômetro da complexidade do mundo em que vivemos. A gente está em um momento de uma realidade muito complexa, e as pessoas querem participar do debate. Não basta mandar uma foto, um vídeo, querem se aprofundar mesmo."

Para Lemos, o novo gênero serve inclusive como antídoto para a polarização do Brasil atual:

"Se um textão viraliza, é porque traz uma ideia nova, foge desse Fla-Flu entre esquerda e direita. É assim que a coisa avança, com debate. Não batendo uma bandeira na outra."

 

Cristina Esteche

Jornalista

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