22/08/2023

Eu perdi o medo da chuva

imagem-63211

O tilintar da chuva sobre o telhado me conduz no tempo, imorredouras lembranças de uma infância vivaz. Posso, até, dizer que não gosto de poesia. Há algo pra lá de chato no linguajar lusófano, essa necessidade de erudição pra se ressaltar diferente, um modismo do brega metido a chic, um não-sei-o quê da bestialidade humana que faz do falar um jeito pedante de ser.

A chuva que cai hoje estende sua mão, coberta com uma luva de seda gelo-branco, ali fora a carruagem dos sonhos à minha espera, e eu sigo divagando pelas ruelas da memória. Cavalos recalcitrantes e um cocheiro com túnica preta esvoaçante. Um filme do Bat Marterson, novela de época das 6? Depois que li “Poema Sujo” de Ferreira Gular, as histórinhas do “Meu Pé de Laranja Lima” pareceram-me um tanto difusas.  Portanto, nenhuma importância espetacular se minhas viagens astrais despertam-me a criança que se escondia  debaixo dos limoeiros nas férias no Marquinho, Goioxim ou Palmital.

Os personagens da minha imaginação eram tão doces, tão ternos, que não consigo esquecer a morena jambo com seus lábios exaltados, mordiscando as gotas das folhas do limão. Dá pra imaginar essa morena voluptuosa esbanjando meiguice?

Volto-me para a professora que faz orientação sexual, e ela benze um colega molhando a ponta da vara de marmelo na água benta. Fecho os olhos e o zunido do açoite provoca arrepios coletivos na turma. O Formigão me questiona, balbuciando: Pólo, serrá que as moças da revistinha, vestidas de Bat Girl e com chicote na mão, aprenderam assim? Lá fomos nós, pobres e mal orientados meninos, para a fila do confessionário. Mais uma vez. A única coisa que consideramos errada, foi abrir a gaveta da mesa da professora – e encontrar a revistinha.  E não sermos cegos!

No Goioxim, o Passo da Nega era um capão fechado. Na saída pra viagem, os adultos avisavam, desobedeça e você vai ver; a nega do Passo da Nega vai te pegar. A caminho de Palmital, tinha a ponte de madeira sobre o Rio Piquiri, parecia uma ponte pênsil, balançava muito, passava um carro só. Fosse pro Goioxim ou Palmital, repetia um “par de vezes” o repertório das aulas de catecismo. Depois de varar o Passo da Nega e o Rio Piquiri, agradecia a Deus porque graças a Ele, fui protegido do mal. Muitas vezes, porém, eu vi a nega com os olhos faiscando fogo saindo do capão. E o Jeep 4 portas, com corrente nas rodas, chuva torrencial, derrapava bem na hora que estava sobre a ponte do Piquiri. O coraçãozinho disparava. Que eu fiz pra merecer esse susto, seria um aviso, devo ir ao confessionário novamente.

Aprendi a cortar a laranja em quatro pedaços, sem faca, a muque. Enfia o dedão no meio e parte a danada. Repete o mesmo com a metade. Você consome a parte fibrosa da fruta, que está colada na casca, e não perde o sumo. Eu olhava para cima e me entretia tentando contar as gotas caindo das folhas. A chuva tinha tido embora, o cheiro das Streptomyces, bactérias hibernadas no solo, entravam em atividade e aquele cheiro de chuva (na verdade, as bactérias acordando e se misturando ao vapor da água) punha-me em sintonia com seres de outros planetas.

Depois, bem depois, entrei em conexão com Raulzito e da chuva, comecei a cantar que o medo é do que deixei passar, dos amores que a vida me trouxe, e eu não pude viver.

Cristina Esteche

Jornalista

Relacionadas

Este post não possui termos na taxonomia personalizada.

A missão da RSN é produzir informações e análises jornalísticas com credibilidade, transparência, qualidade e rapidez, seguindo princípios editoriais de independência, senso crítico, pluralismo e apartidarismo. Além disso, busca contribuir para fortalecer a democracia e conscientizar a cidadania.

Pular para o conteúdo