22/08/2023
Cotidiano

Kundun faz intercâmbio com afoxé de Salvador

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Guarapuava – Projeto recria grupo que é marco na cultura negra do Paraná

O trabalho que vem sendo desenvolvido pela Companhia de Música e Dança Afro Kundun Balê – Quilombo Paiol de Telha no Paraná chegou à Bahia, estado que é considerado o berço da cultura negra no País.
Após trabalho de pesquisa sobre o candomblé (nação keto) feita no Ilê Axé Abassá de Ogun em Salvador, o educador e percussionista Orlando Silva recebeu o convite para que o know-how investido no Kundun seja estendido ao Abassá. A proposta foi feita pela yalorixá Jaciara Ribeiro (foto) que já morou em Guarapuava e já exerceu a coordenação de um trabalho cultural com meninos de rua na Fundação do Bem-Estar do Menor (Fubem) durante a gestão do ex-prefeito Cesar Franco. Na época foi criado o Grupo Erê (criança em ioruba), de dança e percussão, que participou de festivais de folclore no Paraná e em Santa Catarina.
Ao retornar para Salvador, sua terra natal, Jaciara, após a morte de sua mãe Gilda, assumiu dois desafios: a luta pela intolerância religiosa (leia abaixo), que tem repercussão nacional e internacional e o trabalho cultural com jovens em situação de risco. “O que aprendi quando morei no sul (Curitiba e Guarapuava) coloco em prática na Bahia onde o contingente de crianças, adolescentes e jovens, em situação de risco é bem maior”, afirmou.
Pessoa de grande influência nos meios cultural e religioso, dentro e fora do País, Jaciara mantém na sede do Abassá um ateliê de costura onde ensina a arte do corte e da costura, além de oficinas de percussão e de artesanato, todas destinadas aos jovens. Um grupo de dança também foi criado, mas os compromissos políticos, culturais e religiosos que envolvem Jaciara a impedem de dar continuidade aos projetos. “Temos patrocínios, temos os projetos, temos as pessoas, mas falta coordenação, quem coloque em prática e é aí que o Orlando vai entrar”, afirmou.
O intercâmbio com o Kundun será desenvolvido a partir de uma parceria do que já está sendo feito tanto em Salvador como em Guarapuava. Mas o ponto central será a criação de um afoxé que vai levar o nome do grupo de dança e percussão nascido em Curitiba em 1999, sob a coordenação de Orlando Silva, e que trouxe Jaciara e outros bailarinos e percussionistas baianos para o Paraná. “O Utamaduni, ou Herança Cultural na língua africana swahili é um marco na cultura negra do Paraná, reverenciado até hoje”, diz Orlando Silva. Com histórias que passam pelo bloco Ilê Aiê, um dos mais conceituados da Bahia, o Utamaduni dará o nome para o novo afoxé.
Segundo o educador e percussionista, o afoxé tem comportamento específico, seus foliões estão vinculados a diversos terreiros de candomblé. “Existe uma consciência de grupo, de valores que os distinguem de qualquer outro bloco carnavalesco. As principais características são as roupas, nas cores dos Orixás (divindades africanas que são protetoras da natureza), as cantigas em língua iorubá, o som dos instrumentos de percussão, como os atabaques, agogôs, xequerês, entre outros”, explica.
“Durante o tempo em que estive em Salvador e que inclui o período de Carnaval observei que temos condições de implantar um novo ritmo, mais nativo, mais tribal, que é o que o Kundun faz. E é aí que nasce o intercâmbio e que tem como meta o Carnaval de 2011 em Salvador”, diz Orlando Silva.
O incremento a outros projetos do Abassá, que está sediado em Itapuã, como atividades ambientais na Lagoa do Abaeté, por exemplo, também será colocado em prática. O planejamento será feito em abril deste ano quando Jaciara vem a Guarapuava. Em seguida Orlando Silva vai a Salvador. “Vou ficar entre Salvador e Guarapuava”, diz.
O projeto é resultado do sub-programa Diálogos Culturais que vem sendo realizado pelo Kundun em parceria com a Fundação Rureco e com patrocínio do programa Universidade sem Fronteiras, da Secretaria de Estado da Ciência Tecnologia e Ensino Superior (SETI).

Contra a intolerância religiosa
A yalorixá Jaciara Ribeiro é hoje um ícone da luta nacional na luta contra a intolerância religiosa que tem o dia 21 de janeiro marcado no calendário cívico brasileiro por decreto assinado pelo Presidente Lula. Nesse dia, anualmente, uma caminhada ecumênica sai do Largo da Sereia em Itapuã, numa iniciativa da comunidade do terreiro Axé Abassá de Ogum e reúne adeptos de várias religiões.
A data resultou de um projeto de Lei do deputado baiano Daniel Almeida, inspirado em uma ação semelhante da vereadora por Salvador, Olívia Santana, sua colega de partido, o PCdoB.
O Axé Abassá de Ogum tem tudo a ver com a data. É que no dia 21 de janeiro de 2000, a então mais alta sacerdotisa da Casa, Mãe Gilda, morreu de infarto após ter sido vítima de agressões patrocinada pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), por causa da sua opção religiosa.
Além de ter a casa invadida duas vezes por evangélicos que queriam lhe submeter a uma “sessão de exorcismo”, Mãe Gilda foi parar nas páginas do jornal Folha Universal, mantido pela IURD. Uma foto sua ilustrava a matéria intitulada “Macumbeiros charlatães lesam a vida e o bolso dos clientes”.
A partir de então sua alegria desapareceu e sua saúde piorou até que ela morreu no dia 21. Sua filha biológica e sucessora no comando do terreiro, Jaciara, começou então uma luta em busca de reparação e justiça.
Foi uma batalha longa e em setembro de 2008 os herdeiros de Mãe Gilda ganharam no Superior Tribunal de Justiça (STJ) o direito a uma indenização por danos morais causados à sua mãe. A indenização ainda não foi paga.
Foi a primeira vez no Brasil que uma instituição, no caso a IURD, foi condenada por intolerância religiosa. Até então havia casos envolvendo pessoas físicas.
A caminhada que marca o Dia da Intolerância Religiosa reuniu, mais uma vez, membros de diversas manifestações religiosas em um desfile em Salvador, de padres católicos a umbandistas e pastores batistas. Segundo o padre Maciel Maçaneiro, um dos responsáveis da CNBB para o diálogo interreligioso, em entrevista à imprensa baiana, a data é importante para “recordar que cada cidadão tem direito de professar a sua crença, a sua religião, no espaço do Brasil e, ao mesmo tempo, esse direito é recíproco: é meu, seu, de todos.”
Apesar de reconhecer que houve avanços na aceitação de minorias religiosas, padre Maçaneiro diz que a discriminação ainda não foi erradicada no Brasil por ser uma questão também educacional, estritamente ligada ao pouco conhecimento em relação a certas manifestações religiosas.
“Os católicos e cristãos no Brasil se acostumaram com o clima de liberdade, mas nos esquecemos que algumas minorias não têm a mesma aceitação. Esta data toca a religião, mas também é pertinente à educação, de forma que as pessoas devem ser educadas para reconhecer esse valor.”, pondera. “Este não é um valor perene ainda, é um valor que temos que conquistar a cada geração, educando,” afirmou o sacerdote.

Cristina Esteche

Jornalista

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