Georges Bataille diz que o que diferencia as sociedades não é a maneira como produzem, mas como gastam o excedente. O que fazemos quando há mais do que precisamos? Sacrificamos? Celebramos? Reinvestimos? Acumulamos?
Em ‘A Parte Maldita’, o filósofo francês (1897–1962) afirma que a fonte e a essência da nossa riqueza vêm do sol. A irradiação solar oferece energia em abundância. Essa energia circula, e seu destino define a economia, a cultura e o modo como vivemos.
Esse excedente não é um acaso, mas uma condição. Recebemos sempre mais do que precisamos e, por isso, somos convocados a gastar. Ignorar essa força é alimentar o risco do colapso. Se o excesso não for gasto voluntariamente, ele será despendido de forma catastrófica.
Nossa sociedade trata o excesso como estímulo a mais produtividade. Quando sobra, produzimos ainda mais. Como se a única resposta possível fosse sempre a maximização do excedente ad infinitum. Ou até à autodestruição.
O excesso não esgota somente o sistema social, mas também o aparelho psíquico. A pressão por desempenho nos impede de parar, de simplesmente deixar-se estar. A catástrofe atinge o espírito.
Transformadas em máquinas de desempenho, as pessoas quebram, inevitavelmente. Para que possam voltar a funcionar, o esgotamento é nomeado como burnout, transformado em doença, para que então se prescreva um remédio. O cansaço é medicalizado, as terapias servem para manter o rendimento.
Libertos da sociedade disciplinar, passamos a nos autoexplorar. Somos empresários de nós mesmos. Essa é a tese, já bastante difundida, do sul-coreano Byung-Chul Han. A antiga disciplina cedeu lugar ao desempenho, mas o imperativo de produzir permaneceu. De sujeitos obedientes, tornamo-nos sujeitos de desempenho, mais rápidos e eficientes, movidos pela coerção externa que se internaliza, a exigência de sempre fazer mais, o constante autoaperfeiçoamento.
Até o tempo do ócio precisa ser justificado. O lazer se converte em mais uma tarefa, em mais uma forma de produção. Theodor Adorno já advertia que, na sociedade industrial, diversão e lazer tornaram-se prolongamentos do próprio trabalho.
Cercados por estímulos incessantes, telas, informações, opiniões, notificações, o pensamento já não se demora. A atenção, fragmentada, salta de um foco a outro, enquanto a capacidade da escuta se perde, sufocada pela proximidade extrema mas superficial, nublada pelo ruído excessivo de tudo.
O trabalho é levado para qualquer lugar, no bolso. Parar é difícil, quase impossível.
Lagartear. Verbo intransitivo. Expor-se ao sol, à maneira do lagarto
Estamos no outono, faz frio no Paraná. Enquanto escrevo este artigo de opinião no meu quarto gelado, penso no sol lá fora. Daqui a alguns minutos vou sair para lagartear. Sim, expor-me ao sol, à maneira do lagarto, como define o Dicionário Aurélio.
A nível individual, acredito que lagartear é, entre os gestos possíveis, o mais simples e bravo que podemos face à lógica que transforma tudo em mercadoria e o tempo em tempo útil. A vida é mais do que produzir, mais do que funcionar.
O lagarteio não implica produtividade. É um modo sereno de deixar-se, apenas. Sem hiperestímulos. Não há meta nem tempo previsto. O lagarteio termina quando sentimos que basta.
O sol dá sem nunca receber, diz Bataille. Podemos também, por breves momentos, simplesmente estar, sem cobranças. Perceber os sons e fragrâncias ao redor. Observar as pessoas e os animais. Pensar. Contemplar. Demorar-se. Ser inútil.
Enquanto o sol irradiar, lagartearemos.
Pepe Mujica
A princípio, este texto tinha como gancho a morte de Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai e um árduo defensor da vida mansa. No entanto, não fui suficientemente veloz para escrever enquanto havia factualidade nesse acontecimento. Nem por isso vou deixar de mencioná-lo.
“A vida não é só trabalhar. Você é livre quando gasta o tempo da sua vida em coisas que te motivam, que você gosta. E a questão é: em que você gasta o tempo da sua vida? Em que você gasta o milagre de ter nascido?”, pergunta Mujica, e complementa:
Se você não se faz essa pergunta, não se preocupe. O mercado vai cuidar disso e você vai passar a vida toda pagando contas e comprando coisas. E você não compra com dinheiro. Você compra com o tempo da sua vida que gastou para ter esse dinheiro. Mas o tempo da vida não se repõe.
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