22/08/2023
Brasil

Lula poderia ter virado um Mandela. Mas acabou como um Dirceu

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Num julgamento, a verdade não tem importância. Você precisa de uma história que funcione – seja ela real ou inventada. Se você é inocente e não tem uma história boa para selar essa inocência, acabou: o júri vai achar que você é culpado. Se você é culpado e tem uma história bacana, estará livre.

Isso é a lógica da Justiça. Uma lógica deturpada, mas é a única que temos.

Vamos ao caso Lula agora. Os fatos: Lula não é o proprietário formal do sítio em Atibaia. Não há escritura em nome dele. Mas, segundo um dos proprietários formais, tudo o que tem dentro do sítio pertence a Lula. Esse dono formal chama a propriedade de “sítio da dona Marisa”. Sítio que foi severamente reformado pela OAS, de Leo Pinheiro, de quem Lula é amigo.

Aí tem o triplex. O apartamento foi quitado e reformado pela mesma OAS para a família Lula, sempre sob a supervisão do ex-presidente e de dona Marisa, filmados, fotografados e testemunhados no edifício diversas vezes (de resto, se o elevador e a cozinha de R$ 350 mil não eram para eles, para quem era? Ninguém reivindicou a posse desses bens).

De qualquer forma, Leo Pinheiro já confessou: as reformas em Atibaia e no Guarujá foram dois favores da OAS em troca do trabalho de Lula como lobista da empresa no exterior. Não há crime em ser lobista de empreiteira – Lula era um cidadão livre, podia trabalhar para quem quisesse, ainda mais no exterior, onde ele não pode usar seu poder político, só sua influência como celebridade internacional.

O problema é que a OAS tinha contratos superfaturados com a Petrobras. Era uma empresa criminosa. Para todo os efeitos, trabalhar como lobista para ela fora do país equivalia a cuidar de uma rede de postos de gasolina cujo dono é Marcola, o chefe do PCC. Não é crime gerenciar posto de gasolina. É um negócio lícito. Mas se a rede de postos for do PCC, é fria.

Tanto era fria que Lula sempre cuidou de não ter uma escritura do sítio de Atibaia em seu nome, e negou qualquer ligação com o triplex quando a história veio a público.

Não era a melhor história. A desculpa ideal veio em outro momento, num quase ato falho do ex-presidente. Ele disse algo como: “Essas empresas (OAS, Odebrecht) têm milhares de funcionários, faturam bilhões. E todo mundo acha que é tudo dinheiro da Petrobras. Não faz sentido”.

De fato. Não é “tudo dinheiro da Petrobras”. Essas empresas ganham bilhões de forma lícita, e podem usar o dinheiro como bem entendem, inclusive pagando pelos serviços de Lula como lobista. Se ele simplesmente dissesse que o sítio e o triplex foram pagamento por serviços de lobby prestados na América Central e na África, seria uma boa história. E mais: seria até verdade – quanto à Petrobras, lhe restaria seguir dizendo que não sabia de nada, que foi um governante ingênuo, alienado da maldade reinante ao seu redor. Não há ser humano imune à simpatia de Lula. Uma história assim, temperada com o humor e a inteligência do ex-presidente, poderia dar certo. Teria chance de inocentá-lo, inclusive, por falta de provas cabais – tanto de enriquecimento ilícito como de ciência de que, sim, a Petrobras financiava metade da política brasileira via contratos superfaturados.

Mas Lula não soube fazer isso. Ao praticamente negar qualquer relação com os imóveis de Atibaia e do Guarujá, ele os converteu em provas – em evidências de que, sim, ele sabia de tudo. E de que obteve seu naco de lucro pessoal com esse tudo. Lula matou a história que poderia mantê-lo a salvo. Pelo menos tão a salvo quanto Aécio, Serra, Temer, Renan – todos sujeitos cuja presunção de inocência também não resistiria a cinco minutos de confronto com a verdade. Mas é aquela história: a verdade, infelizmente, não conta. O que vale é o caô, coisa que todos esses caras têm de sobra. Lula, para o mal das tantas coisas magníficas que ele já representou, não tem mais o dele.

Como já comentaram mais de uma vez: Lula poderia ter virado presidente da ONU, poderia ser a grande figura da filantropia internacional, ajudando a destinar dezenas de bilhões de dólares em doações e investimentos. Poderia, com seu jogo de cintura, seu magnetismo irresistível, ajudar a redistribuir riqueza e erradicar miséria em meio mundo. E talvez estivesse agora num triplex com vista para o Central Park, tomando uma cachacinha com um Nobel da Paz no colo. Tudo isso com seus pecados pessoais e políticos enterrados no mesmo túmulo onde estão os pecados de Kennedy, Mandela, Gorbachev…

Mas não. Foi virar lobista de empreiteira. Deu nisso.

Alexandre Versignassi  é redator-chefe da Superinteressante. Escreveu o livro Crash – Uma Breve História da Economia, finalista do Prêmio Jabuti.

Cristina Esteche

Jornalista

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