22/08/2023
Brasil

Não estamos buscando soluções políticas, mas sim heróis e mocinhos

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Enquanto pensava sobre esse texto e sobre as manchetes nos jornais dos últimos dias, leio um artigo compartilhado por um amigo querido que, esculachando aqueles que "não tomam posição" e que seriam "isentos governistas", acusa-os de conivência, inércia e falta de iniciativa. Então, sorrio.

Dos quase dois mil comentários que recebi ao publicar um artigo no HuffPost Brasil explicando por que não iria às ruas no domingo passado, eu diria que 80% me acusam de ser "petralha", "cega", "ignorante", e outros adjetivos inomináveis. Então, franzo o rosto.

Vejo na sequência o post de uma blogueira que segue defendendo com unhas e dentes as ações do Lula e o que ela considera o legado de seu governo. Um professor alega que "as pessoas que estavam na manifestação estão indignadas com a ascensão das classes mais baixas. E ponto!" Me pergunto: "Wow! Todas elas?". Então, levanto a sobrancelha.

Videos, memes, fotos e mais fotos do juiz Sérgio Moro. "In Moro we trust". Não consigo estar na internet sem me deparar com a imagem deste homem. Sobrou até para aqueles que, como eu, não se sentem representados por absolutamente nenhum dos personagens desse jogo. Resolvi então fechar o navegador e voltar a escrever, intrigada com essa polarização.

E, de repente, um "clique": me dei conta de que os debates não giram ao redor de ideias e, sim, de pessoas. Indivíduos ou grupos: Lula, Aécio, Moro, Bolsonaro, PT, PSDB, coxinha, petralha, elite, povo…

Eliane Brum escreveu esta semana, em mais um de seus maravilhosos textos, que "quando se elege um culpado, um que simboliza todo o mal, também se elege um salvador, um que simboliza todo o bem. A adesão pela fé, manifeste-se ela pelo ódio ou pelo amor, elimina complexidades e nuances, reduz tudo a uma luta do bem contra o mal." E é isso.

Quanto mais olho para o mundo, para as relações entre as pessoas, para o contexto político, para as manifestações, também para as guerras ao redor do mundo, as novelas mexicanas, as revistas de fofocas e até para o mercado futebolístico sinto que, de alguma forma, passamos a maior parte de nossas vidas em busca de heróis que simbolizem e sublimem nossa necessidade de sabermos que este – o herói – se encarregará de resolver os nossos problemas e que o outro – o vilão – poderá ser responsabilizado pelos nossos fracassos.

O termo herói vem do grego eros e, num primeiro sentido, significa o chefe nobre, como os militares gregos que combateram em Troia. Em um segundo sentido, herói é o semideus, como Hércules; e, por fim, todo o homem elevado à condição de semideus como, por exemplo, os imperadores romanos divinizados. Há, portanto, nos três sentidos, a ideia de que o herói é aquele que por sua excelência supera, por assim dizer, a condição humana. Heróis são fonte de identificação imaginária ou, em outras palavras, de identidade coletiva e frequentemente, senão sempre, instrumentos de legitimação de um regime político pois que atingem os corações (emoções) dos cidadãos (de bem!).

É perceptível como, em termos de coletividade, temos a necessidade de que as coisas sejam simples, sejam A ou sejam B e as pessoas possam, portanto, ser enquadradas em categorias muito bem predefinidas: boas ou más, legais ou chatas, bonitas ou feias, magras ou gordas, inteligentes ou burras, honestas ou desonestas.

Não nos sentimos preparados para os personagens complexos, dúbios, ambíguos, que podem ser ao mesmo tempo dóceis e cruéis, honestos e sádicos ou corruptos e generosos. Talvez a grande dificuldade de lidar com essa complexidade seja a de lidarmos com as nossas próprias contradições e ambiguidades. Ou talvez seja apenas preguiça ou ignorância mesmo. Vai saber…

Nada disso seria tão relevante, se não estivéssemos vivendo um dos momentos mais tensos, emblemáticos e, certamente, o mais desafiador da nossa democracia.

Diz-se que a manifestação do dia 13 de março, que teria reunido milhões (não vou entrar em números aqui pois as informações são divergentes, fato é que eram muitas pessoas), foi apartidária e pautada exclusivamente no repúdio à corrupção. E pode até ter sido nas ruas, mas não é o que estou vendo entre amigos, familiares e colegas. A divisão está acentuada e não digo nem entre ricos e pobres, mas entre "nós" e "eles", seja em qual lado você se enquadre.

E sinto lhe informar minha amiga e meu amigo: você será enquadrado em um dos lados ainda que não queira!

Não deu nem tempo de fechar esse texto e o Delcídio jogou a merda toda no ventilador e o Lula aceitou o cargo de ministro da Casa Civil e essas notícias serviram mais uma vez para polarizar o debate e as imagens de salvadores da pátria e vilões.

As variáveis analisadas são majoritariamente rasas, simplistas e maniqueístas focando em apenas uma das questões envolvidas na nomeação do Lula. Se parássemos cinco minutos para respirar antes de postar, veríamos que não se trata apenas de foro privilegiado, mas se trata também de foro privilegiado.

As consequências vão muito além da Lava Jato e o estrelismo do Moro. Aliás, afetam o próprio fundamento da República. 

A Dilma, com essa nomeação, abriu mão de governar. Quais os impactos disso na decisão dos peemedebistas que votarão no impeachment? O que Lula tem a oferecer que ela não tem? Como vai ficar a questão do parlamentarismo que foi reavivado no STF? Todas essas são questões muito mais importantes do que nos limitarmos ao foro privilegiado e que não estão quase sendo debatidas.

Volto ao texto da Eliane Brum, pois compartilho com ela a apreensão por este momento e o receio de que a polarização venha a beneficiar o retrocesso. 

Vejo faixas machistas com ofensas direcionadas à presidente da República da mesma e corriqueira forma com que todas nós mulheres, somos cotidianamente atacadas. Camisetas (ou abadás) classistas, comentários extremamente racistas e, é claro, não poderiam faltar, saudações nazistas em plena manifestação democrática.

Jair Bolsonaro nadou de braçada nos últimos tempos e neste domingo não foi diferente. Sente-se cada vez mais à vontade para destilar seu veneno, seu ódio e suas ideias retrógradas e perigosas, sem medo da censura da mídia ou popular, já que, apesar de haver sim quem o rechace, ele está tranquilo de que uma importante parcela o apoia, ainda que secretamente. Os analistas políticos não se surpreendem com o surgimento de uma figura como Bolsonaro em um contexto político polarizado como o que vive o Brasil.

"É natural que, quando a esquerda vem sendo atacada como vem sendo aqui no Brasil, surjam esses candidatos com propostas mais conservadoras", explica Glauco Peres da Silva, professor de Ciências Políticas da USP (Universidade de São Paulo).

Há até quem o considere o Trump brasileiro, o que pode ser até um exagero, mas não podemos subestimar o fato de que nas últimas eleições, Bolsonaro foi o deputado mais votado do Rio de Janeiro com mais de 460.000 votos, quadriplicando seus eleitores em quatro anos. E o "clamor das ruas" não faz nada além de consolidar mais e mais o discurso extremista de oportunistas caricatos tais quais o nobre deputado.

O que precisamos urgentemente discutir e refletir é o como essa polarização prejudica a todos e não apenas a "esquerda" (de onde, para mim, o PT passa longe há décadas) mas também a direita liberal que não está afim de ter um representante do estilo Bolsonaro. Perte o PT e perde o PSDB nessa polarização.

Quando se fala que "o problema é a corrupção" colocando-se em polos opostos quem na verdade não está em condições de distanciar-se moralmente um do outro, surgem como salvadores da pátria extremistas como Bolsonaro e oportunistas como qualquer peemedebista.

Precisamos urgentemente tirar o ódio do discurso e começar a debater dispostos a ouvir e a, ao menos, considerar que as pessoas são muito mais complexas do que gostaríamos. Políticos podem ter sim tirado milhões da miséria e ter criado importantes programas de mobilidade social e, ainda assim, terem se corrompido pessoalmente pelas benesses do poder. Assim como podem ser  "honestos", mas favoráveis à tortura.

Não há homem ou mulher que tenha posto os pés nesta terra que não tenha tido suas ambiguidades e suas contradições. Estudos recentes nos trazem que Gandhi, por exemplo, era comprovadamente racista e machista. Não faltam também denúncias de fraude, desvio de verbas e até maus-tratos contra Madre Teresa de Calcutá que será canonizada logo mais em setembro!

Ficando apenas nestes dois exemplos, questiono-me: seria o processo de construção de ícones políticos e históricos tão ficcional quanto a dos heróis dos quadrinhos? Seriam na verdade o reflexo de nossos desejos, anseios e da necessidade de recuperarmos aquela figura antigamente ocupada por cuidadores (pai, mãe, avô, etc.)?

Cientes e conscientes disso tudo, quando pensamos em agentes de mudança política – é preciso saber e lembrar que também estamos lidando com personagens. Que a pessoa humana deste ídolo é falha e que não é profícuo para ninguém sair em defesa incondicional de um ou de outro quando o que está em jogo são os interesses de toda a sociedade.

O ser humano não é binário! Os sentimentos não são pretos ou brancos! existe toda uma camada de cores e o primeiro passo para trabalharmos essa palheta toda é o respeito e a empatia pelo outro. O segundo passo é mudarmos a nós mesmos e às futuras gerações no dia a dia. Nas pequenas ações, nas mentiras cotidianas e no sistema de recompensas com o qual criamos nossos filhos ensinando que para tudo de bom que eles fizerem eles ganharão algo em troca.

Não é fácil andar por aí vendo tanta injustiça, falta de humanidade e desamor. Nos sentimos desesperançosos e, em tempos de redes sociais e smartphones, reclama-se muito de tudo e de todos ao mesmo tempo. De outro lado, os problemas parecem todos de tão fácil resolução e todos parecem tão honestos e de retidão inquestionável que fica no ar o porquê de ainda estarmos expostos a tantos absurdos impregnados em nossas entranhas sociais. "Fora PT" é a última resolução milagrosa. Quem fica? Não importa! Depois a gente vê! Soluções mais profundas? Não podemos pensar nisso agora! Precisamos "resolver os problemasmais urgentes".

E assim nos encontramos passando de mão em mão sem nos darmos conta de que o momento de debater as possíveis soluções é durante a crise, no meio do furacão e não na calmaria, pois a inércia é o primeiro princípio da dinâmica.

Somente conseguiremos olhar para a ambiguidade do outro, desmistificar heróis e vilões, quando soubermos lidar com as nossas próprias sombras e contradições. Quando entendermos que somos matéria falha e imperfeita, mas podemos ser também seres iluminadores e generosos.

Michael Jackson foi um ídolo de imensa dicotomia também, mas colocou em lindas palavras e emocionante melodia uma mensagem que permanecerá atual por muitos e muitos séculos após sua morte:

"I'm starting with the man in the mirror

I'm asking him to change his ways

And no message could have been any clearer:

If you wanna make the world a better place

Take a look at yourself and then make a change"

*Tayná Leite é coach, palestrante advogada e feminista. Esse texto foi publicado originalmente na revista Az Mina.

Cristina Esteche

Jornalista

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