22/08/2023
Cotidiano

O “lixo” da invasão

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O cenário é nada alentador e em vez de atrair, repele. São casebres que tentam se manter sobre tocos de madeira e “paredes” de compensados cobertos, em muitos casos, com pedaços de lona preta, mas que servem de abrigo para famílias e muitas crianças.
Do lado de fora, quando há espaço entre um barraco e outro que se amontoam quase sobre si, as pilhas de lixo, recicláveis ou não, atraem moscas e deixam o lugar ainda mais grotesco.
De um lado da área que já separou socialmente mais de 350 famílias, hoje cerca de 200, ainda tentam sobreviver em meio ao lixo. A única atividade que gera renda é catar o que as “famílias de fino trato” jogam fora. O lixo vira uns míseros trocados nas mãos de mulheres, idosos e crianças. É remexer latões durante o dia para poder comer um feijãozinho à noite. Se falta água tratada na torneira comunitária até por cinco dias consecutivos, sobra enxurrada quando chove apenas pouco mais de uma hora. É o banhado que ameaça diariamente, que se transforma em lama e avança por sobre os casebres, principalmente na temporada de inverno.
“É meio dia, dona Maria, panela no fogo, barriga vazia”. Era justamente meio dia, mas não havia panela e nem fogo, apenas barrigas vazias. Foi assim que encontrei pessoas, seres humanos, vítimas da exclusão social, na “favela da invasão”, logo ali, a menos de duas quadras do CAIC Vila Bela, um local que é apontado por muitos como sendo o antro de uma gangue que amedronta 1,3 mil estudantes do Colégio Estadual Pedro Carli durante noites de aulas.
Durante a semana, pela segunda vez no mês de março, o colégio foi ocupado por jovens armados para possível “acerto de contas” com uma gangue rival.
“Sabemos que o ataque foi feito pela gangue da invasão que queria membros da gangue da Vila Planalto”, contou Márcia de Fátima Santos, presidente da Associação de Pais, Mestres e Funcionários (AMPF).
Aliás, o medo toma conta do bairro e o que impera, inicialmente, é a lei do silêncio. Aos poucos, entretanto, quando sabem que o nome não será revelado, as palavras se materializam na descrição da violência.
“Trabalho no colégio há quase cinco anos e minha filha estuda aqui. Mas meu marido nos traz até o portão e vem nos buscar. Não dá pra sair sozinha”, diz uma funcionária do colégio. “Eu tirei a minha filha do colégio”, intervém a professora.
Para o diretor do Pedro Carli, Elton Lange, a violência tem origem na classe social que envolve a Vila Bela e as localidades do seu entorno. “O nível social é muito baixo. São pessoas oriundas de famílias com renda de no máximo até dois salários mínimos”, diz.
Esses jovens se organizam em grupos sociais que estão à margem da sociedade, assim como a exclusão que os cerca. Eles compõem gangues que estão presentes na Vila Bela, no Jardim Planalto, no Tancredo Neves, no Airton Sena, no Jardim das Américas, entre outros bairros, núcleos e vilas que convergem para o Pedro Carli.
O “recheio” dessa convivência de conflitos são os inúmeros bairros que cortam e ao mesmo tempo interligam essas comunidades. “As diferenças, as brigas dos finais de semana tentam ser acertadas aqui dentro no colégio”, diz o diretor Elton.
Como prevenção, além das poucas inserções da Patrulha Escolar, o colégio fecha os portões, suspende o ir e vir do recreio, orienta quem quer ser orientado. “O alambrado é baixo e eles pulam o muro. Já conversamos, já orientamos os alunos e tentamos falar com os pais. Fizemos uma reunião recentemente e apenas 15 pais dos 1,3 mil alunos vieram”, reclama o diretor.
Para o policial Luiz Machado de Lima, da Patrulha Escolar, o conflito gira em torno da rivalidade da localidade com a área da “invasão”.
“Estamos fazendo policiamento dentro do colégio todos os dias e durante o recreio, no período da noite, os alunos só podem ficar na parte de cima, já que a área mais crítica não está liberada”, comenta.
O fechamento de espaços que recortam a cidade, retraça seus percursos, traça divisões separando de forma acintosa pobres e ricos, funciona como “tampão” para aquilo que nos é mais cômodo não ver.
Se a violência que segundo muitos nasce no lixo da invasão assusta quem está de fora, aterroriza quem está lá dentro. “A gente não dorme com as brigas que acontecem na rua entre as gangues. Tem noite que os tiros passam por cima da casa da gente”, relata uma das moradoras da “invasão”, enquanto toma o chimarrão quase frio faltou gás para terminar de aquecer a água enquanto olha para as panelas vazias sobre o fogão. Ao seu redor três meninas, menores de 8 anos, a olham com o olhar da fome.
“Tudo o que acontece aqui a culpa é nossa, dos moradores da invasão, mas aqui tem famílias honestas que tentam sobreviver apesar do abandono da Prefeitura. Estou aqui há cinco anos esperando uma casa popular que a cada campanha política prometem construir lá no Xarquinho”, reclama. “Para nós a maior violência é o que eles fazem com a gente, pois nem atendimento à saúde temos. Não temos direito à luz e nem à água todos os dias, o que você quer mais?”
Uma das funcionárias do Pedro Carli traça mais uma linha da violência que assombra a vila que tem o nome de Bela. “Nas noites dos finais de semana, principalmente, as gangues ficam nas esquinas bebendo. Há pegas de moto e rachas de carros”. Ela diz também que o consumo de bebida alcoólica associado ao consumo e venda de drogas dá o tom da violência. “Muitos dos alunos não consomem droga dentro do colégio, mas já chegam ultrapassados”, diz.
“Você acha que nós, pobretões, a escória como costumam dizer, temos dinheiro pra comprar carro e fazer rachas? Será que não são os boyzinhos do centro que vêm aqui atrás de bags (cigarro de maconha) e de pedras (crack) que fazem isso, e a culpa cai sobre nós só porque não temos dinheiro?”, questiona uma menina de 19 anos que diz namorar um membro de gangue.
“ A polícia chega aqui, encosta todo mundo na parede e faz revista. Ela (a polícia) faz isso com quem mora no centro”?, pergunta um jovem de 16 anos que mora na “invasão”.
O fechamento em bolsões que já ultrapassam o muro da miséria tem aumentado o potencial de violência, e a própria natureza da agressão é mais cruel. Pesa sobre as toneladas da discriminação social. Assim como para esses jovens que pulam os muros para atacar a turma inimiga é apenas a fácil tarefa de ultrapassar uma barreira material, frágil, o muro da discriminação gerada pelos problemas sociais se apresenta indevassável para as pessoas que ignoram que não se deve deixar o social de fora das suas decisões políticas. Isso sim soa como abuso de poder.
Buscar coibir a violência quando ela já instaurada, dizer que a “invasão” é um “saco sem fundo”, que se acaba aqui e ela ressurge ali, “pipocando” em vários espaços urbanos, é mero comodismo. É mais fácil deixar de ver para não se incomodar. É mais cômodo deixar essas pessoas sem cara, sob o corpo da invisibilidade social. Não há nenhum mapa traçado dessa miséria, nenhuma estatística dessa violência.
Perguntei a uma moradora da “invasão” se ela queria sair dali. A resposta veio imediata. “É o meu sonho, quero trabalhar, tirar as minhas filhas deste lugar. Ir para um lugar mais seguro. Mas como? Isto aqui existe há mais de 10 anos e ninguém faz nada para nos tirar daqui. Não temos emprego. Quando vou catar lixo levo minhas filhas na gaiota, quando arrumo um bico elas ficam em casa sozinhas. Assim vamos vivendo, comendo um dia sim e muitos não”, diz, enquanto sorve mais um pouco do chimarrão. A impressão que tive é que aquela mulher buscava o doce no amargo da erva-mate. Assim como faz para continuar vivendo naquele cantinho isolado, como invasora, e achar que a vida na vila é bela.
Por Cristina Esteche

Cristina Esteche

Jornalista

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