22/08/2023
Brasil

O caso Carli Filho e a figura da culpa temerária

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A aplicação do dolo eventual, ou, então, da culpa consciente, mormente em condutas atreladas ao trânsito, é um problema dos mais tormentosos no Direito Penal. Essa discussão voltará à tona no debate em júri popular no caso Carli Filho [1]. Venho sustentando que a distinção entre as duas figuras deve ocorrer em plano cognitivo e não volitivo, retirando do autor da conduta proibida a liberdade de determinação entre o que deve ou não ser levado a sério no âmbito do trânsito [2].

O objetivo desse ensaio, porém, não ficará centrado especificamente nessa distinção, mas apenas procurará esclarecer aos leitores da possibilidade de incidência do dolo eventual ao crime de homicídio na condução de veículo automotor após a promulgação da Lei n. 12.971/2014. Em seguida, valendo-se dessa temática, destacarei a figura da culpa temerária importada da doutrina espanhola para o Novo Projeto de Código Penal (Projeto de Lei do Senado n. 236/2012).

A Lei n. 12.971/2014 previu um segundo parágrafo no art. 302 da Lei n. 9.503/1997. Embora essa novidade tenha ensejado várias interpretações, o seu conteúdo constitui formas vinculadas de realização culposa da conduta típica prevista no caput do art. 302. Em três contextos o delito de homicídio culposo de trânsito poderá ser sancionado com reclusão, isto é, quando a morte resulta de condução por agente (1) com capacidade psicomotora alterada em decorrência da influência de substância psicoativa ou (2) que participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente ou, ainda, (3) que participa, em via, de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, também não autorizada pela autoridade competente.

Imperioso dizer que a incidência de qualquer das qualificadoras não modifica a natureza jurídica do delito, mas, ao contrário, reforça a tese jurisprudencial de serem culposos os crimes de trânsito (STJ, 6ª Turma, HC n. 58.826/RS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis, DJ 08/09/2009). Essa regra geral, contudo, continuará a comportar exceção, pois ela não passou a ser regra absoluta, a ponto de não ser mais possível a incidência ou a caracterização do dolo eventual. Em termos diretos, as três qualificadoras previstas no § 2° do art. 302 do Código de Trânsito brasileiro não excluem a aplicabilidade do dolo eventual. Nesse sentido, inclusive, a recente decisão monocrática do Ministro Gilmar Mendes [3].

Seria totalmente desproporcional, assim, equiparar os casos de consumo abusivo de substância psicoativa com outros de consumo moderado, porquanto o condutor que as consome abusivamente cria um perigo intenso ao bem jurídico penal, devendo responder pelo crime de homicídio com incidência do Código Penal (art. 121), não podendo integrar às estatísticas do crime culposo na qual se encontram quem as consome de modo moderado. Em síntese, a disposição do § 2° do art. 302 do Código de Trânsito não se trata de norma posterior mais benéfica a ponto de retroagir para beneficiar quem já foi pronunciado (ou condenado) por homicídio doloso em qualquer dos contextos retratados nessa qualificadora.

A discussão levantada pela defesa de Carli Filho no habeas corpus citado, porém, é relevante para recordar a figura da culpa temerária proposta pela Comissão de Juristas designada pelo Senado Federal para redacionar o Anteprojeto de Novo Código Penal (PLS n. 236/2012). A Comissão propôs sob a rubrica “culpa gravíssima” nova espécie de culpa situada entre a culpa comum e o dolo eventual e caracterizada pela excepcional temeridade. Para Selma Pereira Santana, “representa um tipo de culpa substancialmente elevado, determinador de uma moldura penal agravada” [4]. Para o crime do homicídio, as novas molduras representam modalidade qualificada: quatro a oito anos de prisão (art. 121, § 5°).

Mas, o que se entende por culpa gravíssima? No Projeto, a expressão constava somente da Parte Especial (art. 121, § 5°). Nesse ponto, uma Comissão Temporária de Estudo da Reforma do Código Penal, encabeçada pelo então Senador Pedro Taques, acrescentou um novo parágrafo ao dispositivo que regula as definições de crime doloso e culposo (art. 16). Portanto, “há culpa gravíssima quando as circunstâncias do fato demonstrarem que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo, mas agiu com excepcional temeridade”. Não houve, especificamente, um conceito, senão por exclusão se alcança uma vaga conclusão que, em termos diretos, resumo como “aventura ousada”.

E em quais casos haveria excepcional temeridade? A Comissão de Juristas apresentou um rol de casos que revestiam essa natureza: “a causação de morte na condução de veículo automotor sob a influência de álcool ou substâncias de efeitos análogos ou mediante participação em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente” (art. 121, § 6°).

Os proponentes mantiveram a regra geral de que os crimes de trânsito são culposos, porém os dois contextos retratados – morte em razão da influência de álcool e/ou de participação em racha – não mais comportariam exceções. Nesses contextos, a regra geral passaria a ser regra absoluta. Na ocasião, critiquei essa impropriedade, pois não era crível sustentar o abandono do instituto do dolo eventual no contexto de homicídio no trânsito, especialmente para as situações de manifesto desprezo pela vida das demais pessoas da parte dos condutores. Alertei que, se antes da proposição, crimes claramente culposos eram convertidos em dolosos, vingando essa proposta, crimes claramente dolosos, em certos contextos, seriam convertidos em crimes culposos.

Muito atenta a essa consequência, a Comissão Temporária de Estudo da Reforma do Código Penal suprimiu o elenco casuístico que constava do § 6° do art. 121 do Projeto. Nunca discordei que os casos antes expressamente destacados eram muito perigosos e de um resultado de verificação altamente provável à luz da ação depreendida, no entanto a Comissão de Reforma simplesmente presumia que os condutores revelavam atitude censurável somente do ponto de vista da leviandade, ou seja, como “se os condutores não tivessem refletido suficientemente” [5] e, por isso, incidiam em descuido perante a norma de proteção. Em síntese, sustentei que a Comissão de Juristas afastou a figura do dolo eventual muito precipitadamente. O Projeto Substitutivo, nesse ponto, merece muitos aplausos.

Por evidente se revela pertinente o estudo dos graus de culpa, mas é impertinente utilizar a figura da culpa temerária – e a suposta elevação da pena cominada para algumas condutas de homicídio – para fulminar uma das discussões mais difíceis da dogmática jurídico-penal: a diferença entre dolo eventual e culpa consciente. Todos os esforços doutrinários despendidos são ignorados com a simples importação de um “novo” instituto e com o fim de dar uma resposta à sociedade abalada com a elevação do número de acidentes com vítimas fatais.

Andou muito bem o então relator Pedro Taques, pois certamente não se resolve um problema com a adoção de nova regra que, por si só, gerava algumas consequências questionáveis. Recordo apenas duas: em primeiro lugar, tratando-se de crime culposo, independentemente da pena aplicada pelo juiz, admitir-se-ia a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos (art. 61, I, do PLS n. 236/2012); em segundo lugar, tratar-se-ia de norma penal mais benéfica, favorecendo, nos dois contextos retratados, todos os condutores que já foram (ou serão) condenados por homicídio doloso eventual antes da promulgação do Novo Código Penal (o que poderá suceder com Carli Filho).

Notas e Referências:

[1] Luiz Fernando Ribas Carli Filho foi denunciado por suposta prática dos crimes descritos no art. 121, § 2º, IV (por duas vezes), c/c art. 70 do Código Penal, combinado com os artigos 306 e 307, caput, ambos do CTB, aplicando-se a regra do art. 69 do Código Penal. A sessão está marcada para os dias 21 e 22 de janeiro de 2016.

[2] De Bem, Leonardo Schmitt. Direito Penal de Trânsito. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

[3] HC n. 131.861/PR, j. 09/12/2015.

[4] Santana, Selma Pereira. A culpa temerária. São Paulo: RT, 2005, p. 68.

[5] Logoz, Paul apud Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 386.

Leonardo Schmitt de Bem é Professor Adjunto de Direito Penal na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Doutor em Direito Penal pela Università degli Studi di Milano, Itália. Doutor em Direitos e Liberdades Fundamentais pela Universidad de Castilla-La Mancha, Espanha. Mestre em Direito Penal pela Universidade de Coimbra, Portugal. Autor do livro (entre outros): Direito Penal de Trânsito. 3ª ed. Saraiva, 2015, 541p.  

Cristina Esteche

Jornalista

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