22/08/2023
Brasil

O curioso caso da autoridade que não manda

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A Comissão de Especial sobre o Estatuto da Família aprovou ano passado, por 17 votos a 5, o parecer que aprova o Estatuto da Família, documento legal que exclui de sua proteção e do "conceito de família" os casais homoafetivos.

Muitos textos já discutiram, e em minha opinião acertadamente, a inconstitucionalidade do Estatuto da Família em sua formulação atual. Então, não pretendo entrar nesse debate com esse texto. Desejo focar em outro ponto, a meu ver tão fundamental quanto pouco discutido de maneira adequada: a autoridade e legitimidade dos processos decisórios das instituições (em geral) e de nosso Legislativo (em especial).

Gostaria de começar ressaltando que instituições são – muito resumidamente – facilitadores de decisão que permitem a convivência harmoniosa ou ao menos não violenta de grupos, facções e pontos de vista diferentes.

Em uma sociedade plural em termos de valores e crenças é fundamental que existam instuições robustas dotadas de procedimentos legítimos para a manutenção do bem comum. Se as autoridades estatais se pretendem legítimas e capazes de demandar a obediência da população, elas devem respeitar procedimentos que respeitem seus cidadãos.

Aqui está o centro do argumento que quero defender: uma instituição é tão legítima quanto for o respeito que seus procedimentos conferem ao cidadão enquanto uma pessoa humana cuja dignidade tem importância fundamental.

[1] Em seu cenário atual, o Congresso Nacional é praticamente controlado por algumas bancadas que respondem a certos grupos de interesse (até aqui não há um problema, todo Congresso deve ser, por definição, representativo da população), porém esses grupos de interesse e as ideias que essas bancadas correspondem em muitas situações contrariam o pressuposto fundamental do parágrafo anterior: nosso Congresso não tem respeitado, tratado com "igual consideração e respeito" – para usar a formulação de Ronald Dworkin – os cidadãos.

O Estatuto da Família em discussão, por exemplo, recebeu a aprovação de uma Comissão composta em sua esmagadora maioria por deputados evangélicos de índole fundamentalista e por uma minoria que representava aqueles que serão prejudicados pelo Estatuto, minoria que, aliás, sofreu uma tentativa de silenciamento enquanto se opunha ao Estatuto, por parte do deputado Takayama (PSC-SC) que tentou impedir, aos berros, a manifestação da deputada Érica Kokay (PT-DF). Isso tudo em Congresso fortemente influenciado pelo ideário de um evangelismo fundamentalista.

É perfeitamente legítimo que procedimentos democráticos estabeleçam as regras que a maioria entende pertinentes, no entanto estamos falando aqui, no caso concreto, em um procedimento desde o início viciado por um Congresso que sofre de déficits graves de representatividade (por questões como problemas no arranjo eleitoral e financiamento privado de campanha), transparência (o tipo de prerrogativas do presidente da mesa na Câmara de Deputados, por exemplo, torna muito difícil prever o que o Congresso fará) e informação de seus membros (o parecer pela redução da maioridade penal, para ilustrar, apresentava quase nenhum dado empírico e fundamentava a redução com argumentos bíblicos).

Tal contexto – abrindo uma rápida digressão – acaba gerando um atrito que em tese não deveria existir entre democracia e direitos fundamentais de minorias, por exemplo. Esse atrito acaba reforçando um imaginário social de um Poder Legislativo como inimigo da liberdade e de um Poder Judicário como guardião dessa mesma liberdade.

Direitos fundamentais estão sempre sendo ameaçados pelo Congresso e protegidos pelos tribunais, mas o meu ponto aqui é justamente apontar que esse maniqueísmo não deveria existir em uma democracia saudável, porque a melhor leitura do ideal de democracia pressupõe procedimentos que respeitem cidadãos e seus modos de vida.

Democracia não é simplesmente a vontade da maioria: é a vontade de uma minoria condicionada pelo respeito a todas as pessoas, pelo reconhecimento de sua dignidade intrínseca, que permite a todos ter voz nessa formação de um futuro comum.

Nossos procedimentos democráticos e legislativos estão profundamente viciados.

Aquilo que deveria ser uma empreitada conjunta de compartilhamento de poder e responsabilidades, capaz de ampliar significativamente a liberdade dos cidadãos, se tornou um jogo de influência e trocas. Como resultado, teremos a promulgação de leis perfeitamente válidas em um ponto de vista formal e jurídico, porém rigorosamente ilegítimas.

Para concluir: ao não respeitar, em termos concretos, procedimentos que respeitem os cidadãos, nosso Congresso está perdendo gradativamente sua legitimidade. Ao perder sua legitimidade, o Congresso tem se convertido aos poucos em uma autoridade estatal que não tem autoridad moral sobre os cidadãos.

Pouco a pouco (se é que isso já não é uma verdade empírica) as pessoas passarão a obedecer às leis congressuais não porque veem nela uma legitimidade procedimental, mão tão somente porque têm medo de serem punidas no caso de desobediência.

Em outras palavras e radicalizando meu argumento: em breve, a única razão que os cidadãos terão para obedecer será medo, e medo – como se sabe – não é fundamento legítimo para se demandar autoridade.

[1] Aqui, meu argumento é baseado em textos diversos do filósofo norte-americano Ronald Dworkin, notadamente DWORKIN, Ronald. Is Democracy Possible Here? Principles for a New Political Debate. Princeton: Princeton University Press, 2006 e DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. 3a. Edição, São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2011. 

*Daniel Murata é pós-graduando na Universidade de São Paulo e foi estudante visitante na Universidade de Glasgow. Tem interesse em pesquisa nas áreas de Filosofia do Direito e Direitos Humanos.

 

Cristina Esteche

Jornalista

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