domingo, 3 de ago. de 2025
Blog da Cris Guarapuava

O dicionário da posse!

Como o feminicídio é um crime de sintaxe, construído por um 'dicionário da posse' que usa palavras para controlar, isolar e depois matar

Mulher presa por palavras (Ilustração/RSN)

Nesta noite desta segunda (21), véspera de todas as estatísticas e discursos oficiais, o som mais comum nas casas da nossa cidade é o da normalidade. É o barulho da televisão, da louça sendo lavada, das crianças que relutam em dormir. E é também o som das palavras. São elas, as palavras, as ferramentas primárias e mais afiadas na construção da violência que amanhã, terça (22) todos dirão combater.

Se você parar pra pensar, vai perceber que muito antes de uma mão se erguer para agredir, a linguagem já cumpriu o papel de demarcar o território. Existe um dicionário não escrito, um vocabulário da posse que se aprende pelo exemplo e se pratica no cotidiano. Ele começa sutil. Começa com o “minha mulher”, um possessivo que soa como afeto, mas que lentamente se traduz em propriedade. Não é “a mulher com quem divido a vida”, mas “a minha”. O pronome é o primeiro cercado, a primeira grade.

A PALAVRA DE POSSE

Deste ponto em diante, as páginas do dicionário se tornam mais explícitas. Surgem as frases que são perguntas na forma, mas sentenças no conteúdo. “Vai com essa roupa?” Não se pergunta a opinião, se contesta a autonomia. “Falando com quem a essa hora?” Não se indaga por curiosidade, se audita a liberdade. “Você não precisa de amigas, você me tem” Não se oferece companhia, se decreta o isolamento.

CADA FRASE É UM GOLPE

Cada uma dessas frases é um golpe. Não deixa marcas na pele, mas reorganiza a arquitetura da alma. A vítima aprende a ‘pisar em ovos’ no tapete da própria casa, a medir cada gesto, a ensaiar cada resposta. Ela é treinada, dia após dia, a se desculpar por existir. O agressor, por sua vez, ensaia o poder. Ele testa os limites, aperta o laço, e se frustra quando a palavra, sozinha, já não consegue garantir o controle absoluto. A violência física é, quase sempre, um colapso do próprio repertório verbal masculino. É a falência da capacidade de dominar apenas com a voz.

CUMPRIREMOS O RITUAL

Amanhã, o calendário dirá que é 22 de julho. O rádio, a TV e os portais de notícias falarão sobre o ‘Dia Estadual de Combate ao Feminicídio’. Haverá números, entrevistas com especialistas – eu mesma já estou nessa pauta -, caminhadas, fotos de eventos. Cumpriremos o ritual. Mas a tragédia não mora no ritual. Mora na intimidade corrosiva que os discursos não alcançam. Mora nesse dicionário de controle que muitos homens carregam sem perceber e muitas mulheres são forçadas a decorar.

BORA RASGAR ESSE DICIONÁRIO

Talvez o combate mais efetivo não esteja apenas nas leis, que são indispensáveis, mas na coragem de rasgar as páginas desse manual de opressão. Começa em reconhecer que, antes de ser um crime de sangue, o feminicídio é um crime de sintaxe. E que toda morte violenta é, antes de tudo, a falência do respeito, da admiração e, por fim, da própria palavra.

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Cristina Esteche

Jornalista

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