Era para ser uma noite comum. Eu e Gilson saíamos de um jantar tranquilo, na Casa da Amizade, em Guarapuava. Um encontro na noite dessa quarta (28) regado a conversa, risos e algum conforto. Mas, ao seguirmos na rua Visconde de Guarapuava, o contraste se impôs com a força de um soco no estômago. Uma imagem nos atravessou a alma. E não foi uma foto. Foi a cena viva, dolorosa, de um homem se encolhendo sob um cobertor fino, encostado na parede de uma loja fechada. O vento assoviava, a temperatura era quase glacial. E a indiferença, ainda mais.
Paralisamos. Não houve clique de celular, nem ousadia de registro. Fotografar parecia violento. O respeito venceu a vontade de registrar. Mas o impacto permaneceu.

Foto: Eduardo Matysiaki
Não era um caso isolado. Em Curitiba, o fotógrafo Eduardo Matysiaki capturou, com sensibilidade e força, o mesmo retrato do abandono. Moradores de rua tentando se proteger como podem da onda de frio que toma o estado.
METÁFORA VISUAL
A imagem de Matysiaki, que mostra um homem usando um saco de lixo como único abrigo, carrega uma força simbólica devastadora. Essa metáfora visual é um grito silencioso: o ser humano tratado como resíduo, como algo que pode ser descartado, ignorado, varrido para fora do campo de visão.
O saco de lixo, que deveria conter o que a sociedade não quer mais, se transforma em abrigo para quem essa mesma sociedade parece não querer ver. É um símbolo cru do abandono institucional e da desumanização.
Na imagem, o frio é apenas o cenário. O verdadeiro golpe é o que ela revela: o quanto o sistema falha em garantir o mínimo. Não apenas sobrevivência, mas dignidade. Quando alguém precisa se enrolar num saco de lixo para tentar se proteger do vento, a mensagem é clara: ele não tem casa, nem teto, nem coberta, mas, pior ainda, não tem lugar no projeto social vigente.
Essa metáfora também denuncia a seletividade da compaixão: enquanto alguns são acolhidos pelo Estado e pelas redes de proteção, outros são jogados à margem, embrulhados em invisibilidade.
A pergunta que a imagem nos impõe é: se o abrigo de alguém é o lixo, onde está o nosso senso de humanidade?
O QUE VIMOS EM GUARAPUAVA
O frio em cidades como Guarapuava não é apenas uma estação: é um agente de morte para quem vive nas ruas. E o que mata não é só o vento. É a ausência de políticas públicas eficientes. A naturalização da miséria. É a sociedade que aprendeu a desviar o olhar, como quem muda de canal para não estragar o dia.
Moradores de rua não ‘escolhem’ essa condição. Eles e elas são empurrados e empurradas para ela [rua] por um sistema que exclui com precisão cirúrgica. Desemprego, saúde mental negligenciada, laços familiares rompidos, drogas, abandono estatal. Há sempre uma teia complexa por trás daquele corpo encolhido na calçada.
QUANTO?
Quantas mortes evitáveis nos custará a inércia? Quantas cenas como essa ainda teremos de presenciar até que se aceite que acolhimento e dignidade não são favores, mas direitos? Abrigos emergenciais devem existir e funcionar. Temos na cidade, mas não são suficientes e carecem de investimentos. Mais que isso, precisamos de políticas de longo prazo, de moradia assistida, de saúde mental, de reintegração social.
Enquanto isso não vem, a cidade segue dormindo. E eles, tentando não morrer de frio e de fome.
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