22/08/2023

O Oriente Médio, o terror e o jogo internacional

O sistema internacional contemporâneo, sabemos, é altamente marcado por uma assimetria em sua estrutura de poder. Não é preciso ser especialista em política internacional para perceber isso. Portanto, as poucas grandes potências e que são as mesmas desde 1945, no limite, definem o destino politico do mundo. O momento presente do teatro internacional até assiste a uma relativa cooperação contra um inimigo comum, mas, como lembra o neorealismo político, cooperações são temporárias. E no confuso cenário global é o Oriente Médio a região que apresenta-se como o mais nevrálgico ponto de tensão do globo. E há tempos.

Situado em zona estrategicamente privilegiada, num ponto equidistante entre Ásia, Europa e África a região ganhou ainda mais notoriedade quando nos anos 1930 descobriu-se tratar do maior reduto petrolífero do planeta. Já irradiava forte teor cultural há 1300 anos como berço das três maiores religiões monoteístas e sua importância só aumentou desde então. No meio acadêmico é forte o debate sobre quem melhor explica a história da civilização, se o aspecto econômico, ou cultural, como se fossem excludentes. Ao pensar o Oriente Médio essa polêmica não existe: insere-se em ambas perspectivas.

Tal importância despontou desde cedo a cobiça das potências. De todas, ninguém fez tanto estrago como a Grã-Bretanha que para defender seus interesses e posicionar-se como árbitra das tensões daquele emaranhado de chefes tribais do início do século XX, resolver inventar os mais esdrúxulos Estados há época do pós Primeira Guerra. As consequências de tamanha irresponsabilidade estão aí nos dias de hoje. Os Estados Unidos apenas deram continuidade, mas não são os responsáveis primeiros pelo trágico destino territorial dos povos que por lá serpeiam.

Para além da gênese da formação dos Estados árabes e não árabes no Oriente  Médio, há outros ingredientes geopolíticos envolvidos na compressão do espectro regional, destacando-se a questão israelo-palestina e o petróleo do Golfo; o hidrocarboneto seguirá por muitas décadas, ou século, ditando a matriz energética global para incômodo dos ambientalistas.

A intervenção externa que sempre pautou essa região influiu nos aspectos endógenos. Tal interferência nem sempre obedeceu à sensatez necessária, mesmo para defender o próprio interesse do invasor. Para nos restringirmos a mais recente delas, tome-se o exemplo da malfadada intervenção estadunidense no Iraque em 2003 que produziu algo em torno de 500 mil mortes iraquianas e cujos desdobramentos explicam os eventos recentes em Paris.

Depois de Estados Unidos, Espanha e Reino Unido, é a França quem paga o preço maior, ela que tanto lutou contra aquela intervenção. A França começou o ano de 2015 e agora termina sediando os dois maiores atentados promovidos pelo terror islâmico, ao menos no ocidente, já que Nigéria, Somália, Quênia, Líbano, conhecem bem os estragos dessa vertente extremista e que nada tem a ver com os princípios do Islã. Contudo, fora da Europa a repercussão não é a mesma. No momento em que o Estado Islâmico acaba de cometer sua mais impressionante ação, parece ficar claro à tal “Comunidade Internacional” onde reside a origem do caos, um mero produto da Guerra do Iraque e que transformou o país exatamente no antípoda do que se propunha, convertendo-o provavelmente no maior abrigo de terroristas do mundo.

Daesh

Simultaneamente aos ataques da coalizão anglo-americana ao Iraque, o jordaniano Abu Mussab al Zarqawi, seguindo uma perspectiva pragmática sabia muito bem o que queria: aproveitar o oportuno momento para destituir a dinastia hachemita da Jordânia e quiçá reconstruir as fronteiras sonhada pelos árabes do início do século XX –agora pelos caminhos do jihadismo –  diferentemente daquelas moldadas a partir de Londres e Paris quando do famigerado Acordo de Sykes-Picot de 1916. Também não deu certo seu projeto.

Quando eclodiu a guerra em 2003 ele transferiu-se com seu grupo (Jamma Jamma’ at al Tawhid, mais tarde Al Qaeda no Iraque) da Jordânia para o Iraque sob os auspícios de seu mentor político e espiritual, Osama bin Laden. Durante a vigência da ditadura de Saddam Hussein, al Zarqawi não teria a menor chance, mas agora estavam lançadas as bases e condições para a organização de um tremendo grupo terrorista. O líder extremista morreria em combate e sete anos mais tarde bin Laden também seria executado no Paquistão. Os desdobramentos futuros dessas duas mortes levaram os líderes substitutos ao desentendimento e ao consequente rompimento entre a ala alocada no Paquistão (al Qaeda) e aquela organizada no Iraque. Com o novo contexto, o movimento no Iraque abriu mão da nomenclatura do grupo dada por al Zarqiwi, Al Qaeda no Iraque (AQI) e rebatizou-se como Estado Islâmico do Iraque (ISI) ainda em 2006, tendo o jovem militante Abu Bakr al Baghdadi à frente.

Quando a “Primavera Árabe” irrompeu na Síria em 2012, as relações entre o ISI e al Qaeda na Síria, a Frente al Nusra, azedaram de vez. Depois de breve unidade, romperam e partiram para o confronto recíproco. Foi aí que al Baghdadi resolveu acrescentar o “S” à sua organização tornando-se o Estado Islâmico do Iraque e Síria (ou Levante, o ISIS, em 2013) e mais tarde, apenas, Estado Islâmico (EI) de quem se arvora designar o Califa: o mundo é o limite. Nesse mosaico de denominações muitos são os acrônimos utilizados para referir-se ao grupo extremista, mas nada incomoda mais que ser chamado de DAESH, adaptação das iniciais em árabe de al Dawla al-Islamiya fil Iraq wa’s Sham, cuja fonética tem um duplo sentido, pois igualmente significa “o semeador da discórdia.” Portanto, o termo Daesh tem uma conotação pejorativa e que irrita os fascínoras que seguem o grupo, algo comparado a pouco nobre expressão PIGS para representar os “primos pobres” da União Europeia, Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha.

Abu Bakr al Baghdadi defende a sólida tese que o Oriente Médio ainda está sob a vigência de uma ordem colonial perpetrada pelo imperialismo europeu e bem disposto a romper com ela a qualquer preço, o que é deveras preocupante. As trapalhadas franco-estadunidense na Líbia derrubando Kadafi e substituindo-o por algo bem pior ajudaram o Estado Islâmico a estender seus tentáculos até o norte africano. Detalhe: a Líbia é predominantemente um país saariano e de difícil policiamento ao sul por onde provavelmente são desviadas grandes quantidades de armas acumuladas por décadas por Muamar Kadafi. Ninguém sabe bem ao certo onde essas armas foram parar depois que o ditador caiu e o país transformado no caos.

Nessa segunda década do novo século e passados quase quinze anos dos ataques às torres gêmeas que reconfigurou a ordem internacional, parece que temos um mundo pior que aquele pré 11 de setembro de 2001. As incertezas prevalecem sobre o otimismo e a agenda de segurança global. O mundo parece estar sem norte.

*Edilson Adão Cândido da Silva, autor de Geografia em Rede pela FTD e Oriente Médio, a gênese das fronteiras, é professor de Relações Internacionais da Facamp.

 

 

Cristina Esteche

Jornalista

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