O que pode o corpo? Tenho me perguntado: o que pode um corpo em Guarapuava? Trabalhar. Trabalhar duro. Trabalhar duro e, com fé, progredir. Certamente, contribuir com o nosso belo quadro social. Reviver, a cada subida e descida de um Pérola do Oeste, a ética protestante e, claro, o espírito do capitalismo. Tardio.
O que pode um corpo? Em Guarapuava? Guardar-se, em uma caixa, como um violino muito, muito raro? Pode mais que isso, claro. Mas o quê? O que pode um corpo? Armazenar histórias, contar histórias; falar de si, e ao mesmo tempo de tudo, já que de tudo fica um pouco? (Às vezes um botão, às vezes um rato.) O que pode um corpo em Guarapuava? O mesmo que em S. Geraldo ou em qualquer outra cidade. O quê? O que podem suas mãos, suas pernas, seus olhos, sua boca? Dormir-andar-vagar-mendicar pelas margens como a flâneur antropóloga desorientada de Quarenta Dias? Dormir na rodoviária mais gelada do Brasil, onde nem os cachorros pernoitam, esperando um ônibus para Pasárgada? Unir o povo das veredas e organizar um protesto? Ir ao CineXV assistir ao novo filme do Superman? Ouvir a conversa dos outros na fila da lotérica da Saldanha?
Você já pensou? O que pode o seu corpo em Guarapuava? Amar? Sentir frio? Sentir frio e amar? Transmitir a alguém o legado da nossa miséria? Tomar chimarrão no Parque do Lago? Pichar construções brancas ou abandonadas? Desenhar belos e submissos quadros urbanos a mando da prefeitura nos muros públicos? Pode um corpo, em Guarapuava, ser criança e sonhar? Engajar-se no movimento estudantil, sindical, antimanicomial; na luta trans, na luta feminista, na luta de classes? Escrever colunas de opinião? Tirar a dedo doze livros da estante e ver o que podem os corpos em outras estâncias?
Há espaço aqui, na cidade — nesta cidade —, espreitado entre melancolias e mercadorias — há espaço para a transvaloração dos valores de que fala o filósofo? Ou só é possível lá longe? O seu corpo, o meu corpo, os nossos corpos estão abertos a alegrias que não tenham sido catalogadas? Ou preferimos os ultraprocessados? Conseguiríamos dançar, se tentássemos? Dançaríamos com a bola nos pés em alguma das quadras de futebol que reúne crianças que estão descobrindo se podem, ou não, sonhar? Dançaríamos com palavras? O que mais podemos? Discutir o problema mente-corpo em um colóquio de filosofia na Unicentro? Ou no Roots? Às 4h da manhã, sob as fumaças grossas do Barbyro, colocar a questão: o que pode um corpo? E esperar um debordiano situacionista responder: andar por aí; ou um marxista: juntar-se à revolução; ou um tiktoker: aparecer.
E a respiração do corpo? Não estaria o corpo entupido? Cheio de órgãos previsíveis? De desejos condicionados? O seu corpo inteiro não está muito previsível? Você já aceitou esse destino arranjado? Não estaria, em alguma medida, na própria desordem a alegria nova? O que pode um jornalista? O que posso eu? Colocar questões? Cavucar esta terra latina tão hermética? E questionar seria plantar a semente da desordem, do novo? O que pode o meu corpo, o que faço com meu corpo, como vivo com meu corpo, na minha cidade, e o que faço para desfazer esse enorme e angustiante laço moral e ético de um capitalismo tardio que se quer insuperável? Faço poesia? Música? Danço? Pinto? Atuo? Intervenho na cidade? Choro em público? Invento novas realidades? Apequeno-me pela cidade ou construo uma nova? Meu corpo é agente ativo ou assujeitado? O que faço com minhas palavras? Repito o discurso dominante? Pergunto: o que pode um corpo?
“Nem mesmo sabemos o que pode um corpo, diz Espinosa. Ou seja: Nem mesmo sabemos de que afecções somos capazes, nem até onde vai nossa potência.” (Gilles Deleuze)
Não sabemos o que pode um corpo. Dessa compreensão, surge a possibilidade. O que pode um corpo em Guarapuava?
“Perder-se também é caminho.” (Clarice Lispector)