22/08/2023
Blog da Cris

O silêncio depois das sirenes!

Ao cair da tarde, o mar insiste em bater no Aterro com a mesma cadência de sempre, como se lembrasse: o Rio já sobreviveu a muita coisa

Mãe chora sobre o filho morto (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

A cidade acorda primeiro pelo barulho de helicópteros. Antes do sol tocar o Pão de Açúcar, já há sirenes riscando a manhã, e o Rio, esse Rio que insiste em ser cartão-postal mesmo quando chove pólvora, começa o dia contando ausências. Os números correm, frios, nas telas de TV. Mas do outro lado das planilhas existem corpos em sacos pretos, alinhados, alguns empilhados como se a pressa coubesse mais do que o respeito.

No asfalto quente, uma mãe reconhece o filho pela camisa do Flamengo, meio coberta de poeira. Outra, pela tatuagem no antebraço. São mães do lado de cá e do lado de lá, porque nesse jogo maldito a geografia das lágrimas não tem fronteira. Policiais tombam com o colete aberto, traficantes ruem com os tênis ainda novos. Trocam-se tiros, trocam-se acusações; o que não se troca é a dor, que permanece. E a cidade segue, como sempre, tentando trabalhar entre barricadas e bloqueios, aprendendo a andar de cabeça baixa para não encarar o improvisado memorial que se forma no canto da rua.

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

No alto do mapa, o Palácio se enrijece. O governo do estado escolhe atravessar o vendaval sem pedir a mão do Governo Federal. Talvez por cálculo, talvez por convicção, talvez por medo de dividir o palco ou a responsabilidade. Em Brasília, a palavra da vez volta a ser GLO, esse decreto que veste a crise com farda e entrega às Forças Armadas o que escapou das mãos da política. Lula resiste. E a resistência dele não nasce do coração de pedra, mas do acúmulo de frustrações. Afinal, o GLO já serviu para muita foto, pouca solução. Soldado no beco vira manchete; o crime organizado, que não se desfaz em marcha, agradece a distração.

QUEM É QUEM

Entre o ‘não’ à GLO e o ‘sim’ às operações que se repetem como uma reza sem fé, a cidade fica no meio, encurralada. A cada ciclo de confronto prometem-se “estratégias integradas”, “inteligência”, “queda de índices”. E, no entanto, é sempre a mesma coreografia: helicóptero, blindado, caveirão; tiros; balanço parcial; coletiva; silêncio. O silêncio depois das sirenes é o mais cruel, porque nele moram as perguntas que ninguém quer responder. Quem governa o medo? Quem lucra com a guerra que nunca termina? Por que a bala chega mais rápido do que o saneamento? Por que a escola fecha quando o fuzil abre?

Não há inocentes no tabuleiro do abandono. Há responsabilidades diferentes. Há o estado que deveria coordenar e não consegue. Há a União que precisa apoiar sem fantasiar a crise de desfile militar. Há prefeitos esmagados entre territórios sem CEP e orçamentos sem ar. Há, sobretudo, a economia subterrânea que paga contas onde o Estado só chega com giroflex. E há nós, espectadores cansados, que já nos acostumamos a trocar a indignação por uma manchete a mais.

(Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

AS DUAS FILAS NA PRAÇA

Na Praça da Penha, entre corpos expostos, enfileirados, duas filas que se tocam sem se olhar: a das viúvas de farda e a das mães de tênis. A conversa que não acontece entre elas talvez fosse a única capaz de desarmar o palanque. Afinal, o sangue do filho de uma tem a mesma cor do sangue do filho da outra. Mas quem as aproxima? Quem oferece algo além de discurso?

O Rio precisa de um pacto que não caiba na coletiva de imprensa. Ou seja: luz na viela, creche aberta, metrô que suba o morro, emprego que derrube o fuzil, polícia que investigue e prenda chefes. Não apenas soldados descartáveis. Precisa de Ministério Público que siga o dinheiro, de juiz que não se amedronte, de defensor que não desista, de pastor e padre que dividam o pão e multipliquem a presença. Precisa, sobretudo, de um governo que compreenda que segurança pública não se mede só por apreensão de armas, mas por quantas crianças atravessam o ano letivo em paz.

QUEM ACERTA?

Fuzis expostos por autoridades em coletiva no RJ (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Talvez o governo do estado acerte quando recusa a terceirização da própria crise. Talvez o Presidente da República acerte quando recusa a GLO como atalho. Talvez ambos errem quando transformam a cautela em paralisia e o orgulho em obstinação. Entre o ‘não’ e o ‘não’, quem responde ‘sim’ ao morador que não pode abrir o comércio? Quem responde ‘sim’ à família que só quer enterrar quem é dela sem medo de represália? A soma entristece. 121 mortos na megaoperação nos complexos do Alemão e da Penha contra o Comando Vermelho. Destes, quatro policiais mortos e 117 suspeitos, segundo o secretário da Polícia Civil, o delegado Felipe Curi.

É PRECISO VIVER

Ao cair da tarde, o mar insiste em bater no Aterro com a mesma cadência de sempre, como se lembrasse: o Rio já sobreviveu a muita coisa. Mas sobreviver não é suficiente. A cidade merece viver. Amanhã, os helicópteros talvez voltem. As falas oficiais voltarão também, com gráficos e promessas. Enquanto a política se perde na disputa de versões, o crime agradece o feriado da razão.

Até que um dia, quem sabe, as sirenes não inaugurem a manhã. E, no lugar do ruído, a gente ouça crianças entrando na escola, mães empurrando carrinhos, policiais voltando para casa, traficantes sem clientela porque o trabalho formal chegou antes da arma. Nesse dia, a crônica perderá o assunto. E o Rio, finalmente, ganhará de volta a sua voz. Que assim seja!

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Cristina Esteche

Jornalista

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