22/08/2023


Cotidiano Paraná Região

Paiol de Telha é o primeiro quilombo titulado no Paraná

Comunidade está localizada no município de Reserva do Iguaçu

paiol-estrada

*Por Franciele Petry e Lizely Borges/Terra de Direitos

Resistindo às margens da rodovia (Foto: Terra de Direitos)

Cinquenta anos de luta e mais de um século de resistência estão presentes na voz embargada de quem hoje comemora a vitória conquistada pela famílias do Quilombo Invernada Paiol de Telha. “Emocionadíssima”, é como define o sentimento Danielly da Rocha Santos, vice-presidente da Associação Quilombola da comunidade. Isso porque as famílias do quilombo localizado na cidade de Reserva do Iguaçu, no Centro-Sul do Paraná, receberam nessa terça (30) a notícia de que o Paiol de Telha é oficialmente o primeiro território quilombola a ser titulado no estado.

O título expedido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), após determinação judicial, transfere para a Associação Quilombola Pró-Reintegração Invernada Paiol de Telha-Fundão o título de reconhecimento de domínio coletivo de duas áreas que somam 225 hectares de terra – uma pequena parte dos 2.959 hectares que a comunidade tem direito.

Na memória de Danielly, ainda estão as lembranças da época em que a famílias estiveram acampadas nas margens da PR 459, em frente ao território que hoje é reconhecido como de direito de 300 famílias quilombolas. Expulsos da terra conquistada há mais de 150 anos, o grupo esteve instalado na beira da estrada, por ausência de opções e como meio de pressão ao governo, por quase duas décadas.

Barraco de pau-a-pique (Foto: Terra de Direitos)

“Agora está passando um filme na minha cabeça: lembro de quando a gente ficou no asfalto, debaixo de sol, com muita dificuldade”, conta. “É uma coisa que parecia tão distante, de tanta luta de muitas pessoas que não vão estar presentes porque vieram a falecer antes disso. Chega a arrepiar”, relembra emocionada.

Com o título do território quilombola em mãos, as famílias do quilombo poderão avançar na conquista de serviços básicos de infraestrutura, como fornecimento de água e energia elétrica. Mas elas lembram: para que todas as 300 famílias possam viver e plantar na terra, é preciso garantir a titulação de todo o território. “Ainda há ainda um longo passo, mas isso comprova que não podemos perder a esperança, só está começando a nossa luta”, garante Danielly.

DETERMINAÇÃO DA JUSTIÇA

Primeira titulação de um quilombo no governo de Jair Bolsonaro – que já chegou a declarar que não haveria um palmo de terra para quilombola em seu mandato -, a emissão do título do território quilombola se deu após determinação judicial.

No fim de março, uma liminar da juíza  Silvia Regina Salau Brollo, da 11ª Vara da Justiça Federal de Curitiba, estabeleceu a data de 2 de maio como prazo máximo para a titulação das duas áreas.

Na decisão, a magistrada considerou que a titulação do quilombo era uma questão de “respeito aos direitos constitucionais”, e estabeleceu multa diária de R$ 600 mil ao Incra em caso de descumprimento. Além disso, a liminar também determinou o prazo de 180 dias para que a União destine R$ 23 milhões para aquisição de outros 1.200 hectares do território tradicional que já possuem decreto de desapropriação assinado.

O advogado popular da Terra de Direitos que atuou na ação, Fernando Prioste, comemora a emissão do título em um contexto difícil, mas destaca que o caminho judicial não pode ser a regra para titulação de territórios quilombolas. “Para além de cumprir determinações judiciais, o Incra e o Governo Federal deveriam cumprir a Constituição Federal e dar andamento célere às titulações.

Mas isso só vai ocorrer com pressão e muita luta das comunidades”, aponta.Quilombola do Paiol de Telha, Isabela Cruz também recebe com alegria a notícia, mas lamenta a morosidade para titulação do território – mesma situação enfrentada por outros quilombos. “Infelizmente a gente vê que é preciso que haja ameaça de multa ou pressão judicial para que o processo andasse”, avalia. “Se por um lado a gente fica feliz pela nossa comunidade que levou tanto tempo para ter esse direito reconhecido, a gente fica apreensiva pelas outras”. No Paraná, existem outras 37 comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Palmares – nenhuma delas com processo de titulação avançado. O baixo orçamento destinado para a política de titulação contribui para essa morosidade. Em 2019, apenas R$ 3,4 milhões foram destinados para a área responsável por titular os 1.716 processos de titulação abertos no Incra.

Uma das audiências na comunidade (Foto: Lizely Borges)

O baixo orçamento para titulação dos territórios quilombolas e o aumento da violência sofrida pelas comunidades foi objeto de nova denúncia internacional, em fevereiro deste ano, por organizações de atuação na defesa dos povos tradicionais e pauta socioambiental, entre elas a Terra de Direitos.

Para Isabela, o lugar das comunidades quilombolas no orçamento público e a não execução de políticas públicas dirigidas revelam como o Estado brasileiro não atua em defesa da população negra. “Pelo contrário”, destaca. “A gente sempre vê o Estado como maior violador desses povos. E vemos a proposta do Ministro da Justiça [o pacote anti-crime] que quer exterminar ainda mais a juventude negra”.

Apresentado, em fevereiro, pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, o projeto prevê o que foi nomeado como “licença para matar”, ao fortalecer a tese de legítima defesa em crimes cometidos por policiais.“Se eles estão lutando para acabar com os direitos dos povos quilombolas e  tradicionais, nós estamos lutando para garantir e conquistar nossos direitos”, reafirma Isabela.

UM CAMINHO LONGO

Os primeiros passos (Foto: Terra de Direitos)

Primeira comunidade quilombola do Paraná a ser reconhecida pela Fundação Cultural Palmares, no ano de 2005, o Paiol de Telha é local de muita luta e resistência.

As terras que formam o território tradicional foram deixadas de herança pela escravocrata Balbina Siqueira a 11 trabalhadores e trabalhadoras escravizados, em 1866.

Após um intenso processo de expropriação da terra que lhes era de direito, os quilombolas descendentes dos herdeiros foram expulsos do território na década de 1970.

Durante anos, as famílias viveram conflitos intensos com a Cooperativa Agrária, que tinha a propriedade das terras.

Após diferentes processos de reocupação e despejo violento das áreas que fizeram com que alguns quilombolas vivessem durante quase 20 anos acampadas às margens da PR 459, as famílias conquistaram em 2015, a posse provisória de quase 200 hectares.

em o título, muitas famílias vivem de forma precária, em barracos de lona e sem acesso a energia elétrica e saneamento básico. (Foto: Franciele Petry)

Sem o título das terras, os quilombolas viviam em condições precárias e com a insegurança de um novo despejo. No mesmo ano a então presidenta Dilma Rousseff também assinou o decreto de desapropriação que permite a desintrusão de 1.460 hectares  dos 2.959 hectares reconhecidos pelo Incra.

Em 2016, a União repassou ao Incra o valor de R$ 9,2 milhões de reais para a aquisição de dois dos sete imóveis previstos no decreto presidencial.

(Imagem: Terra de Direitos)

Após falta de acordo com a Cooperativa Agrária, a aquisição das áreas foi oficializada em janeiro deste ano.A necessidade de terra para sobrevivência dos quilombolas fez com que em 2017 cerca de 70 famílias ocupassem uma terceira área do território.

De extensão de 99 hectares, a porção de terra, de acordo com a comunidade, tem sido fundamental para garantir condições mínimas de reprodução da vida. Atualmente, neste trecho de terra as famílias plantam alimentos para consumo e venda e criam animais. O grupo sofre de permanentes ameaças de despejo.

No momento, tramita no Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4) uma nova ação movida pela Cooperativa Agrária para reintegração de posse, sem data para apreciação.Mas os quilombolas prometem resistir, como indica Isabela: “Se o povo achou que ia amedrontar a gente, cada pequena vitória será comemorada como grande batalha. E daqui para frente será mais: agora a luta é pra construir escola na comunidade, para garantir saneamento básico, garantir direitos básicos para a população que está lá há mais de 3 anos e ainda mora em barraco de lona”.

Cristina Esteche

Jornalista

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