22/08/2023
Cotidiano Cultura e Entretenimento Thiago de Oliveira

Para ler ao som de Angela Ro Ro 

Antes de morrer, aos 75 anos, Ro Ro deu ao Brasil a sua gota de sangue em forma verbal

No álbum que leva seu próprio nome, Angela mistura rock, blues, samba-canção e muito romantismo (Foto: Reprodução)

Em Morangos mofados (1982), Caio Fernando Abreu sugere ao leitor que acompanhe o conto ‘Os sobreviventes’ ao som de Angela Ro Ro. Por grave desconhecimento da música popular brasileira à época, início destes meus vinte anos, quando peguei os contos completos do Caio para ler, não sabia quem era Angela Ro Ro. Felizmente, segui o conselho do autor e li a história ouvindo ‘Gota de sangue’.

‘Os sobreviventes’ traz monólogos de um homem e de uma mulher que tentam dialogar. Um casal entre um gay e uma lésbica, “bons intelectuais pequeno-burgueses” – como se autodescreve um dos personagens – atravessando a ditadura militar, que tentaram de tudo: “psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia. E sobrou só esse nó no peito, agora faço o quê?”.

Caio menciona Angela no início, no meio e no fim da história. O blues/rock brasileiro de Ro Ro compõe a atmosfera do conto. No começo, a mulher bebe vodca enquanto se abana com a capa de um disco da cantora-compositora. Na metade, pouco antes de ir ao banheiro vomitar, pede ao homem que coloque o disco para tocar novamente. ‘Amor, meu grande amor’ é a canção da vez. (Que tudo que ofereço é meu calor, meu endereço / A vida do teu filho / Desde o fim até o começo). No final, Angela Ro Ro, que se assumiu lésbica e foi perseguida durante a ditadura, continua tocando enquanto a personagem diz, ironicamente, que tudo vai bem.

Caio Fernando Abreu é o contista da juventude rebelde dos anos de ditadura. Da angústia existencial de uma geração desencantada após a repressão militar. Da liberdade sexual. Em ‘Os sobreviventes’, expressa esse trauma a partir das contradições e da desilusão de duas pessoas com os ideais evanescidos. Mas que continuam procurando um jeito. A literatura, a música – e o amor – são alguns desses jeitos.

Angela Ro Ro é a trilha sonora desse conto e também dessa geração “arrasada, acabada, maltratada, torturada, desperezada, liquidada, sem estrada pra fugir”, como canta em sua Balada da Arrasada. O fracasso coletivo passou para a angústia individual. Ro Ro, polêmica desde que surgira, transformou-se em ícone lésbico na MPB. Antes de morrer, aos 75 anos, deu ao Brasil a sua gota de sangue em forma verbal.

Todo canto e pranto meu
E tudo que sou eu
Por certo vai vingar
Então você vai entender
Que o quanto que eu quis sofrer
Valeu pelo tentar

(A mim e a mais ninguém, Angela Ro Ro)

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Thiago de Oliveira

Jornalista

Jornalista formado pela Universidade Estadual do Centro-Oeste. @tdolvr

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