22/08/2023
Brasil

Peri, Jaci!

Costumo encontrá-los nas proximidades da Rodoviária Municipal, muitas vezes, dormindo debaixo de pedaços de lona preta, outras, perambulando pelas ruas da cidade. São homens, alcoolizados ou sóbrios, mulheres com crianças nos colos ou tecendo outra vida no ventre, que batem de porta em porta vendendo balaios, pedindo se há “alguma coisa para dar”.

Eles, os índios que habitam reservas em Marrecas, no município de Turvo, no Rio das Cobras, em Nova Laranjeiras, saem do seu habitat para os centros urbanos, por necessidade, não por opção. São obrigados a migrar em busca de melhor qualidade de vida, muitas vezes expulsos pela violência, pela fome, pela miséria. Na cidade, acabam dando de cara com o preconceito, com a discriminação. E eles querem tão pouco. Reivindicam justiça social, cidadania, respeito, dignidade, garantia à terra, uma política indigenista e ampla. São pedidos próprios de qualquer ser humano na luta pela melhoria da qualidade de vida, por uma sociedade igualitária, justa.

Há anos, costumava ir sempre até a Marrecas. Queria entender a cultura tão rica dos primeiros habitantes do nosso país. Seus usos, costumes, idioma. Conheci a luta de caciques antigos pela preservação, principalmente, da língua mãe, no caso o guarani e o caingangue. Já não havia mais a diversidade do artesanato, nem caça, nem pesca. A colheita do pinhão, a cultura da erva mate surgiram como fonte de renda e, em caso extremo, a mendicância. Mas mesmo assim, aculturados, preservam o amor à terra, um chão que é coletivo, de posse de todo o povo, como preconiza o artigo 231, da Constituição Brasileira. Mesmo assim, presenciamos a expulsão, a violência física e moral, tendo como pivô, justamente o seu solo sagrado, a terra.

Mas para muitos, terra significa poder, dividendos. E aqueles que já foram donos de tudo, hoje padecem com muito pouco. Aqueles para quem todo dia era dia, agora têm o 19 de abril, marcado no calendário. Aqueles a quem se invoca quando se quer mostrar posse repetindo o guerreiro Guairacá, quando aqui pelas bandas de Guarapuava, bradou que “esta terra tem dono”, contra o opressor, não quer nada que não lhe seja de direito: a natureza, tal qual ela é.

E para resumir tudo isso, empresto trecho da carta escrita pela Cacique Seathe, quando o presidente dos Estados Unidos quis comprar o território do seu povo. Para mim, nada mais atual:

“Como pode-se comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia é estranha. Nós não somos donos da pureza do ar ou do brilho da água. Como pode então comprá-los de nós? Decidimos apenas sobre as coisas do nosso tempo. Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e na crença do meu povo.
 Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um torrão de terra é igual ao outro. Porque ele é um estranho, que vem de noite e rouba da terra tudo quanto necessita. A terra não é sua irmã, nem sua amiga, e depois de exaurí-la ele vai embora. Deixa para trás o túmulo de seu pai sem remorsos. Rouba a terra de seus filhos, nada respeita. Esquece os antepassados e os direitos dos filhos. Sua ganância empobrece a terra e deixa atrás de si os desertos. Suas cidades são um tormento para os olhos do homem vermelho, mas talvez seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que nada compreende. 
Não se pode encontrar paz nas cidades do homem branco. Nem lugar onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem na primavera ou o zunir das asas dos insetos. Talvez por ser um selvagem que nada entende, o barulho das cidades é terrível para os meus ouvidos. E que espécie de vida é aquela em que o homem não pode ouvir a voz do corvo noturno ou a conversa dos sapos no brejo à noite? Um índio prefere o suave sussurro do vento sobre o espelho d'água e o próprio cheiro do vento, purificado pela chuva do meio-dia e com aroma de pinho. O ar é precioso para o homem vermelho, porque todos os seres vivos respiram o mesmo ar, animais, árvores, homens”.

E quanto aos índios que perambulam pelas cidades, dá para entender agora? 

Cristina Esteche

Jornalista

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