22/08/2023
Cotidiano

Reportagem: Escândalos ferem auto-estima de Guarapuava

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Guarapuava – Uma enquete realizada pela TRIBUNA com pessoas de diferentes classes sociais aponta o que é voz corrente entre 10 de 10 moradores de Guarapuava: repúdio e desaprovação total à maneira como a cidade vêm sendo administrada, principalmente depois dos sucessivos escândalos que envolveram negativamente o nome do Município.

Os problemas não são vistos apenas como “fatalidades”, e a recente revelação de que o motorista da família do prefeito Fernando Ribas Carli (foto), Cosme Stimer, ganha salário equivalente ao de um secretário municipal, causou uma indignação ainda maior entre amplos setores da comunidade.

Essa sensação negativa já se tornara cristalina depois que o prefeito Carli simplesmente desapareceu da cidade, sem fazer qualquer comunicado público, em pleno choque provocado com a morte do jogador de futsal Robson Rocha. Ficou evidente que não se tratava de uma simples “fatalidade”, quando uma repetição de denúncias, de acidentes similares ao de Robson, colocou em xeque a imagem de Carli como administrador público.

O prefeito teve diversas chances para demonstrar o contrário. Poderia ter-se manifestado imediatamente ao acidente, assinado de próprio punho uma nota de pesar (que acabou sendo redigida e assinada por sua assessoria 40 horas depois, quando Robson já tinha sido sepultado) ou no mínimo anunciar a abertura de uma sindicância para averiguar as denúncias, e não corroborar com a impunidade. Carli mergulhou num silêncio sepulcral, não é sabido se por vergonha, ou se por indiferença mesmo.

Assessor familiar com alto salário
O guarapuavano já estava atordoado com a saraivada de críticas que se abatera sobre a cidade, vinda de todos os quadrantes do País, quando outra bomba foi detonada na noite de domingo 14 no “Fantástico”, o programa de maior audiência da líder de audiência, a Rede Globo de Televisão.

Numa reportagem que mostrava como estavam vivendo os acusados por acidentes de trânsito com morte no Brasil, o ex-deputado estadual Fernando Carli Filho foi interceptado por uma equipe de reportagem do “Fantástico”. No volante, está o assessor, ou motorista, Cosme Stimer, auto-declarado “fiel escudeiro” do prefeito Fernando Carli (veja matéria nesta página). Visivelmente contrariado com a presença dos repórteres, Cosme Stimer acelera o carro e quase derruba o repórter.

A cena abre a reportagem do “Fantástico” e é repetida no fechamento. No final, mais uma revelação: o veículo Gol, dirigido por Cosme, tinha mais de R$ 1,7 mil em multas. O assessor-motorista, em entrevista exclusiva ao site “Rede Sul de Notícias”, afirma que o carro não é seu, mas se nega a contar quem é o proprietário. E confirma, com a maior naturalidade, que seu salário é igual ao de um secretário municipal (R$ 4,9 mil, segundo ele). “Comigo, ninguém põe a mão no Nandinho”, avisa o “escudeiro” carlista, que também se define como um “fiscal” dos servidores públicos, na tentativa de justificar seu alto salário. “Os funcionários passam pela minha mão”, complementa, orgulhoso.

A correlação entre esses fatos percorre um caminho imenso, abalando a imagem de Guarapuava do Oiapoque ao Chuí, e estaciona na garagem do Paço Municipal, onde o motorista-assessor descarrega o prefeito Fernando Ribas Carli. Degraus acima, fica o gabinete oficial do prefeito – duas enormes salas conjugadas, ocupada por um homem recluso, cercado por um restrito grupo de assessores. Entre eles, Cosme Stimer, que, como assumido “fiel escudeiro” e protetor da prole de Carli, desfruta do inimaginável direito de entrar e sair da sala na hora que bem entender, ao contrário dos pobres mortais secretários municipais.

O distanciamento entre o gabinete do prefeito e os cerca de 4mil funcionários, que “passam pelas mãos” do motorista, salta aos olhos. Carli responde a uma ação na Justiça, já transitando em 2º grau, acusado de forçar estagiários a fazer campanha para o então candidato a deputado estadual Fernando Carli, em 2006. As provas foram flagradas pela Polícia Federal dentro da Secretaria Municipal da Educação. Se for condenado, o prefeito poderá perder o mandato, ou se antecipar e fazer o mesmo caminho que seu filho mais velho, e renunciar ao cargo.

Em seu segundo mandato, Carli nunca se esforçou para ter o mínimo de diálogo com o sindicato dos servidores, como se sequer reconhecesse sua legitimidade. Os funcionários, que passam pelas mãos de um “escudeiro”, ganham salários baixos e achatados, acumulando uma defasagem salarial de aproximadamente 40%, sem reajustes há quase quatro anos.

Carli cultiva estilo arcaico
Como “escudeiro” vem da palavra “escudo”, isto sugere como é o verdadeiro estilo administrativo de Fernando Carli. As administrações modernas, principalmente após a Constituição de 1988, que aumentou as liberdades democráticas e traduziu isso como um avanço na escala das relações sociais, procuram cada vez mais realizar consultas populares para respaldar suas decisões.

Carli segue na contramão. Ele administra por si, nos moldes dos coronéis das antigas. O caso da Câmara Municipal chega a ser um exemplo patético. Não contente por ter negociado o apoio de 8 dos 12 vereadores, Carli aplicou-lhes a “lei da mordaça”, construindo um escudo onde só é votado e aprovado o que lhe interessa. Seria mais fácil um camelo passar por dentro de uma agulha do que estes vereadores discutirem um projeto vindo do gabinete principal da Prefeitura – onde só se entra pela porta dos fundos.

Por essas e outras, a Câmara aprovou, de bico fechado, o empréstimo de R$ 11,4 milhões a ser contraído por Carli, mesmo a Prefeitura tendo superávit de R$ 20 milhões, um aumento astronômico na taxa de lixo, a autorização para o prefeito ausentar-se do País sem aviso prévio. Estes vereadores também foram transformados em “fieis escudeiros”, pois perderam completamente o sentido da vereança, do poder legislativo, fiscalizador, contestatório, com uma remuneração não menos rendosa. São escudos sem voz, sem ação, sem personalidade política. Um combativo jornalista de Guarapuava, Paulo Demário, da década de 60, assim se referia à Câmara, por sua inércia: “Sarcófago de múmias”.

Uma nova data e a mesma história
O “Caso Robson” não se limita apenas às paredes do ginásio Joaquinzão, sobre o qual se vislumbra a necessidade inexorável de uma nova reforma, tantas são as falhas apontadas, quatro anos após a Prefeitura ter gasto uma fortuna para restaurá-lo com o “símbolo da modernidade” carlista. E também não é apenas o gritante e revelador silêncio do prefeito.

O jogador Robson Rocha foi morto durante a Copa 200 Anos, um evento ideado a quatro paredes, dentro de uma programação maior, onde Carli pretendia envolver a população para comemorar os 200 anos de Guarapuava. A data oficial do aniversário é 9 de dezembro de 1819, dia que foi elevada à Freguesia de Nossa Senhora de Belém. O objetivo do prefeito é abolir essa data e passar a reverenciar o ano de 1810, que foi quando os colonizadores chegaram à cidade. Isso explica por que o último 9 de dezembro passou em branco, sem nenhuma programação oficial, resumindo-se a uma atividade esportiva onde o filho mais novo do prefeito, Bernardo, e o apresentador Jauri Gomes, funcionário de Carli numa emissora de rádio, entregavam medalhas para os atletas. Detalhe: ambos são pré-candidatos às eleições deste ano.

Carli passaria a escrever seu nome na História como o prefeito dos 200 anos. Não que a data não tenha importância histórica. Mas o Brasil, para comemorar o Descobrimento, não deixa de festejar a Independência, o Dia da Bandeira, de Tiradentes, do Índio. Quiçá, então, seja igualmente significativo fazer apologia a 1770, que foi quando Cândido Xavier fincou sua bandeira de desbravador em terras guarapuavanas, o primeiro marco oficial português no solo outrora reivindicado pelos espanhóis no Tratado de Tordesilhas.

A despeito das incursões memorialistas de um administrador entregue à nostalgia, a população de Guarapuava vive uma realidade não menos adversa a dos reis e príncipes que fugiram de Portugal em desabalada carreira diante da iminente chegada das tropas enviadas por um baixinho francês, chamado Napoleão Bonaparte. No mundo real, de fato, Guarapuava convive com um prefeito que foge de suas responsabilidades públicas e com um Município entregue à sorte e ao desleixo: ruas esburacadas, crianças sem escolas e sem transporte escolar no interior, sem creches na cidade, mato crescendo sobre calçadas, violência nos bairros, ausência total e irrestrita de um projeto macro-econômico, queixas que se somam no correr dos dias.

Nada comparável a uma cidade que, no passar de seus 200 e tantos anos, foi, aí sim, reconhecida no Paraná e no Brasil. A Guarapuava real, e não a dos reis fictícios ou factóides, acumula índices exponenciais na agropecuária e na indústria de transformação, firma-se como pólo universitário por obra de seus realizadores, um comércio que procura, com suas próprias pernas, adapta-se a essa nova realidade. Um Município com 200 e tantos anos, com uma História rica, mas sem um projeto viável para o turismo. Um Município que vive a batalha real e incansável da população, e as fantasias rocambolescas dos administradores municipais com seus “fieis escudeiros”.

Foto: arquivo/Rede Sul

Cristina Esteche

Jornalista

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