22/08/2023
Cotidiano

Reportagem: o drama haitiano

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por Cleyton Lutz

Guarapuava – Os recentes terremotos ocorridos no país, que já vitimaram 22 brasileiros, expuseram a trágica situação vivida pelo Haiti. O país, que divide com República Dominicana uma ilha da América Central, é hoje o mais pobre de toda a América, situação que se acentuou com os terremotos que atingiram pelo menos metade da população do país, entre mortos, feridos e desabrigados.

O Haiti possui uma série de características particulares. A ilha de Hispaniola – depois chamada de Santo Domingo, local onde hoje estão o país e a República Dominicana – foi a primeira encontrada pelo navegador Cristóvão Colombo, a quem normalmente é atribuída à descoberta da América. Posteriormente, em 1804, o território foi o primeiro da América a se declarar independente das metrópoles européias. O processo de independência do Haiti também teve características diversas das dos demais países latino-americanas.

“O processo foi liderado por ex-escravos de origem africana que tinham vínculos políticos e intelectuais com a Revolução Francesa. Sua organização como Estado e nação, portanto, destoou da situação dos demais territórios das Américas, nos quais os processos de independência foram conduzidos pelos descendentes dos colonizadores”, explica o mestre em História pela Unesp e professor da Unicentro, Raphael Sebrian.

A situação do país

O professor, pesquisador na área de História da América, destaca que o Haiti possui uma série características semelhantes as dos demais países da América Central como o fato de serem ex-colônias, dependentes de poucos produtos de exportação nem sempre valorizados, com territórios pequenos e sujeitos às turbulências climáticas e sociais. No entanto, a situação econômica e social no Haiti se agravou ao longo dos anos e hoje 80% da população do país é composta por pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza.

O comandante do 26º Grupo de Artilharia de Campanha (GAC) de Guarapuava, tenente-coronel César Augusto Rosa de Araújo, morou no país entre maio e dezembro de 2007. Ele foi um dos membros da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah), da qual as Forças Armadas do Brasil fazem parte. “O maior problema do Haiti hoje é a falta infraestrutura. A distribuição de água e energia elétrica é deficiente. Além disso, faltam aeroportos, estradas e portos, o que dificulta a aplicação dos recursos”, comenta.

O comandante destaca ainda outros problemas que impedem o país de crescer e se desenvolver como a indústria incipiente, a falta de mão de obra qualificada e as terras pobres para o cultivo. “Os poucos recursos aplicados no Haiti vem de algumas empresas ou de haitianos que hoje moram fora do país. Boa parte dos produtos é importada da República Dominicana, já que existe uma dificuldade enorme na aplicação da agricultura no país”, afirma. Ele complementa ainda que diante de tantos problemas, o turismo, também prejudicado pelos acontecimentos recentes, surge como uma das alternativas econômicas mais importantes do Haiti.

Além das dificuldades sociais, as intempéries da natureza também prejudicam o país. Furacões, ciclones e tufões são comuns no Haiti e em toda América Central. Por último, dois terremotos, um de 7 graus na escala Richter, destruíram o país. “No segundo semestre de cada ano, determinadas empresas alteram suas rotas para não navegarem pela região”, comenta o tenente-coronel.

O Brasil no Haiti

Marcado por um domínio colonial conturbado – o território no qual hoje se encontra o Haiti foi durante muito tempo disputado por Espanha, França e Inglaterra – e pela interferência dos Estados Unidos posteriormente, o país hoje é ocupado por forças designadas pela Organização das Nações Unidas (ONU). O Brasil integra a Minustah desde 2004. “É um trabalho de ajuda humanitária, que também visa à manutenção da ordem e da segurança no país. É importante destacar ainda que a relação do Exército Brasileiro com o povo haitiano é muita boa. Sentimos-nos respaldados a continuar esse trabalho”, afirma o comandante Augusto.

No entanto, a presença brasileira no Haiti é cercada por alguns questionamentos, envolvendo, principalmente, a eficácia da missão e a posição do Brasil enquanto líder da coalizão – durante a semana, a iniciativa estadunidense no auxílio às vítimas do terremoto reacendeu o debate sobre os papéis desempenhados pelos países que integram a Minustah.

“É óbvio que, por se tratar de processo coordenado por forças militares, cabem questionamentos à proposta. Existem inúmeros relatórios e dados que questionam a eficácia da Minustah e que colocam sob suspeita o papel do Brasil, por conta da posição de liderança que o país ocupa”, comenta Sebrian. “Sabe-se que permanecem os saques, as violações às leis, aos direitos humanos, que a violência e a desorganização política são problemas que as tropas brasileiras não conseguiram resolver. Há acusações, inclusive, de corrupção das tropas de coalizão”, continua.

Ele analisa ainda a presença de outros países nas tomadas de decisões envolvendo o Haiti. “Mesmo com as ressalvas, é preciso lembrar que qualquer intervenção ou presença estrangeira no Haiti pode ser considerada violação da soberania nacional, independentemente dos -bons interesses- da missão”.

O futuro

A tragédia na qual se transformou a situação haitiana resulta de uma série de fatores, enumerados da seguinte forma por Sebrian. “O fracasso desse Estado surgido dos enfrentamentos que levaram à independência em 1804, as seguidas ingerências estrangeiras a partir de fins do século XIX, as características naturais, bem como sua configuração produtiva extremamente restrita e dependente de poucos produtos”.

Com tantas dificuldades, a única opção que parece restar aos haitianos é se apegar à esperança de dias melhores. “Trata-se de um povo muito alegre, apesar das dificuldades que degradam o país. Eles procuram melhorar e se recompor a cada dia”, relata o comandante Augusto. Quem sabe assim os haitianos acordam de um pesadelo que já dura há séculos.

Amigos lamentam a morte do coronel Zanin

O coronel João Eliseu Souza Zanin (foto) foi uma das vítimas do terremoto ocorrido no dia 12 no Haiti. Zanin trabalhou como subcomandante no 26º GAC de Guarapuava entre 1999 e 2000. “Ele era um profissional exemplar, muito bom e muito competente. Trata-se de uma perda para o Exército”, afirmou o comandante do 26o GAC, tenente-coronel César Augusto Rosa de Araújo (foto). Os dois foram contemporâneos na escola da formação militar.

O dentista Maurício Malucelli atuou como oficial do GAC entre 1998 e 2003, trabalhando ao lado de Zanin. “Ele foi uma pessoa excelente e, até onde a hierarquia militar permitia, mantinha uma relação muito próxima com todos. Tive contato por e-mail com várias pessoas que trabalharam conosco naquele período e todas se mostraram muito consternadas”, encerra Malucelli.

Zanin trabalhou ainda como comandante do 15º GAC, localizado na Lapa, e por último servia o gabinete do comando do Exército Brasileiro, em Brasília. Ele se encontrava no Haiti participando de reuniões da coordenação das forças brasileira do Minustah.

Texto publicado na TRIBUNA REGIONAL DO CENTRO-OESTE de hoje, dia 23

Foto: divulgação

Cristina Esteche

Jornalista

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