22/08/2023
Blog da Cris Paraná

Um pedido de perdão aos direitos humanos

Sob as águas da hidrelétrica construída por duas ditaduras, ficaram vidas, terras e histórias que só agora começam a ser reconhecidas

Avás-Guarani (Foto: William Brisida /Itaipu Binacional)

Tem coisa que não se desinventa. O lago da Itaipu, com milhares de hectares inundados, é uma delas. Também não se desinventa o impacto de uma obra que, ao gerar energia para iluminar duas nações, deixou milhares no escuro, sem terra, sem memória, sem escuta. Ribeirinhos desalojados sem aviso. Povos indígenas expulsos de territórios sagrados. O Salto das Sete Quedas, um espetáculo natural e espiritual, engolido pelas águas em silêncio.

Agora, em 2025, com as engrenagens da política internacional mais exigentes e os ventos da sustentabilidade soprando forte, a gestão brasileira da Itaipu e o Estado brasileiro finalmente tomaram uma decisão. Reconheceram oficialmente os danos causados aos povos indígenas e ribeirinhos durante a construção da usina e prometem reparar parte do que foi destruído. Um gesto tardio, sim, mas necessário.

A construção da usina, na década de 1970, ocorreu sob a lógica do regime militar brasileiro com o general Emílio Garrastazu Médici, e da ditadura de Alfredo Stroessner no Paraguai. Foi um projeto faraônico, marcado por ausência de consulta às populações locais, repressão e um discurso desenvolvimentista que não admitia contestação. Afinal, perguntar era subversivo. Retirar era a regra.

Enquanto a energia gerada por Itaipu alimentava o crescimento econômico dos dois países, milhares de ribeirinhos foram desalojados sem compensações adequadas. Os indígenas Avá-Guarani, originários da região, praticamente apagados do mapa. As terras tradicionais, as rotas de pesca, os locais sagrados, como o Salto das Sete Quedas, santuário ancestral para os indígenas e cartão-postal para o Brasil, tudo desapareceu sob as águas da barragem.

COMPENSAÇÃO

Mas agora, junto com pedidos de perdão, a Itaipu anunciou um investimento de R$ 240 milhões para comprar cerca de três mil hectares de terras e repassá-las a 31 comunidades indígenas Avá-Guarani. Vai fazer também reflorestamento, apoiar infraestrutura básica. Anuncia também a promoção de programas de reparação cultural, com construção de memoriais, apoio a projetos sociais e a retomada do diálogo com lideranças indígenas e ribeirinhas. Tudo como parte de um acordo firmado com o STF, Ministério Público, Funai, Incra e representantes dos próprios povos afetados. E isso ocorre num momento em que a empresa busca fortalecer a imagem de responsabilidade socioambiental. Coincidentemente, às vésperas de grandes renovações contratuais com o setor elétrico e sob pressão internacional por práticas mais sustentáveis e éticas.

Mas a atual diretoria brasileira da Itaipu parece determinada a virar essa página da história remota. Há, sim, sinais claros de uma mudança de postura: escuta ativa, visitas às aldeias, abertura ao diálogo, respeito a processos comunitários. Não se trata de só cumprir um acordo no papel. É, ao que tudo indica, uma tentativa de reparar com dignidade e presença. Algo raro no mundo da gestão pública, e mais raro ainda em empreendimentos desse porte.

SÓ O COMEÇO

Mas para que seja justa: reparação não é favor. É o mínimo. E que fique claro, não se trata só de hectares devolvidos, mas de um lugar no mundo restaurado. É a chance de reconstruir modos de vida desfeitos pela lógica da velocidade e do concreto. Dar voz a quem foi sistematicamente calado. É parar de repetir, no presente, as violências do passado.

No debate público, entretanto, é essencial diferenciar reconhecimento simbólico de reparação concreta. A criação de memoriais não substitui a devolução de terras. A escuta ativa é fundamental, mas precisa estar acompanhada de compromissos firmados com participação das comunidades envolvidas. Não se trata apenas de dizer “desculpe”, mas de devolver dignidade.

Entendo que a Itaipu representa uma das maiores contradições do modelo energético latino-americano: enquanto alimenta o progresso urbano-industrial, produziu em décadas anteriores apagamentos históricos irreversíveis. O gesto de agora é importante. No entanto, precisa estar acompanhado de ações estruturantes, transparentes e com participação social efetiva. E a atual diretoria da binacional conhece muito bem essa pauta.

Leia outras notícias no Portal RSN.

Cristina Esteche

Jornalista

Relacionadas

A missão da RSN é produzir informações e análises jornalísticas com credibilidade, transparência, qualidade e rapidez, seguindo princípios editoriais de independência, senso crítico, pluralismo e apartidarismo. Além disso, busca contribuir para fortalecer a democracia e conscientizar a cidadania.

RSN
Visão geral da Política de Privacidade

Este site usa cookies para que possamos oferecer a melhor experiência de usuário possível. As informações de cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.