Neste domingo, dia 31 de março, o golpe de estado que instaurou a ditadura militar no Brasil em 1964 completa 55 anos. O regime de exceção que resultou do golpe só terminou em 1985. Durante 21 anos o Brasil sobreviveu sob uma ditadura militar que fechou o Congresso Nacional e censurou a imprensa.
Dados da Comissão da Verdade apontam que 434 pessoas foram mortas pelo regime ou desapareceram. Apenas 33 corpos foram encontrados.
Diante de um dia tão significativo na história recente do Brasil, e da recomendação do atual presidente Jair Bolsonaro, para que a data fosse comemorada pelas forças armadas, o Portal RSN fez uma entrevista exclusiva com a Professora Dra. em Geografia Márcia da Silva, da Universidade do Centro-Oeste do Paraná (Unicentro) sobre o tema.
Márcia que é professora do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia, Mestrado e Doutorado na universidade, estuda os tentáculos dos ‘Grupos de Poder’ dentro da Geografia Política.
Primeiro gostaria de agradecer a oportunidade de falar sobre um tema tão importante, como forma de reflexão sobre o passado, para que este definitivamente não se repita no Brasil e que seja banido dos países que ainda o asseguram. Segundo gostaria de destacar que fundamento-me, para esta conversa, em diversos autores, estudiosos, pesquisadores efetivos daquele período, e que tenho os seus argumentos como respaldo, ou seja, não estou propondo uma abordagem de senso comum. Aliás, esta é a abordagem que gostaria de desconstruir, mesmo em poucas palavras.
PORTAL RSN – Não tivemos ditadura no Brasil?
(Márcia da Silva) Tivemos sim ditadura no Brasil, e há diversos argumentos, fatos, constatações para chegarmos a esta afirmativa. No entanto, para sermos um pouco mais didáticos na resposta penso ser importante conceituar aquele momento histórico por meio da apropriação dos termos Regime Militar e Ditadura Militar e de seu conceito mais amplo, que é o de Regime Político, o que faço com base nos estudos de Noberto Bobbio e de Lucio Levi, dentre outros.
O conceito de Regime Político, então, para esses autores, concebe uma relação social e política construída em determinado tempo e espaço por intermédio da interação e da disputa de agentes sociais. Compõem-se de normas que regulam o acesso, a conquista ou a manutenção dos centros de poder político, bem como os valores e os procedimentos que orientam e legitimam a repetição de determinados comportamentos, que tornam possível o desenvolvimento regular e ordenado de um tipo de luta pelo poder e do exercício deste no arranjo político vigente. Regime Político, por fim, há diversos e com características específicas, a exemplo dos monárquicos, republicanos e democráticos (BOBBIO, 1980, pp. 39-43; LEVI, 1998, pp. 1081-1084).
A partir daí, então, podemos falar de Ditadura Militar e de Regime Militar, que tem provocado debates, em especial nas redes sociais, tanto em termos de utilização dos conceitos como do fato de terem existido ou não no Brasil entre 1964 e 1985.
Sem dúvida a utilização de um ou de outro termo pode refletir diferentes maneiras de entender o passado e o presente, de um ponto de vista político e social e, por isso, não se trata de uma simples questão de nomenclatura ou de preciosismo acadêmico, mas sim de uma tomada de posição diante das formas de arbítrio vivenciadas pela sociedade brasileira cujos efeitos ainda podem ser sentidos.
Claro que aqueles que conceberam o Golpe Militar de 1964, ainda no afã do mesmo, apressaram-se em construir narrativas que o identificassem a exemplos positivos. Poderia citar muitas, mas escolho três que considero menos reais e mais discursivas, portanto, mais fáceis de disseminação e de credibilidade.
a) Denominar o Golpe Militar de “revolução” (à Direita). E por quê? Porque o conceito de revolução agrega, muito mais do que mudanças de perfis à esquerda ou à direita, mudanças nos contextos político, econômico, cultural e social, configurando uma nova ordem político-social e econômica de expectativas positivas, de renovação, de reinício, de recomeço de profundas transformações. E o é, mas não em termos de Ditadura Militar (basta ler o restante da entrevista).
b) O empregado do elemento ideológico (e hoje se fala tanto em combater as ideologias!), no sentido de amenizar o termo ditadura militar para o termo regime militar, o que significava (e ainda significa) transformar o primeiro apenas em um fenômeno político, dentro do sistema mais amplo que é o de regime político, não assumindo as atrocidades e a supressão de direitos sociais e civis característicos de regimes ditatoriais. Neste contexto inclui-se o discurso equivocado de que muitos dos mortos pela Ditadura Militar eram guerrilheiros, comunistas, bandidos, assaltantes etc e que se não fossem mortos, matariam. Estes são mitos narrativos que buscam desconstruir as crueldades eminentes deste período.
c) O caráter classista do Golpe Militar. As ditaduras, em diversos países, são sistemas políticos de apropriação burguesa e contrarrevolucionárias (e não revolucionárias!) em que o “braço armado” do Estado assume as tarefas políticas e repressoras com o intuito de desarticular os setores mais ativos das classes trabalhadoras (partidos políticos, sindicatos, agremiações estudantis, meios de comunicação, manifestações artísticas e culturais e outras formas de organizações representativas da sociedade). Ou seja, aqueles que lutam, de fato, por seus direitos.
São 34% da população mundial sob este regime, em 52 países, segundo estudo do Índice da Democracia, pesquisa conduzida pela Revista The Economist, com o Economist Intelligence Unit Democracy Index, que monitora a situação da democracia no mundo a partir de cinco categorias gerais de análise: o processo eleitoral e o pluralismo, as liberdades civis, o funcionamento do governo, a participação política e a cultura política. Exemplos são Coreia do Norte, Síria, Irã e Arábia Saudita, Afeganistão, Emirados Árabes, Líbia, Congo, Mianmar, Venezuela (a partir de 2017), dentre outros.
Neste sentido não há qualquer dúvida de que o que ocorreu no Brasil de 31 de março de 1964 a 15 de janeiro de 1985 (datas oficiais) foi uma Ditadura e não apenas um Regime. O uso do termo Regime é impreciso para dar conta da forma da dominação instaurada e é insuficiente para dar conta da violência política estabelecida pelos Atos Institucionais, que colocavam em prática a censura, a perseguição política, a supressão de direitos constitucionais, a ausência total de democracia e a repressão àqueles que eram contrários a mesma. Todos estes elementos parecem ser melhor explicitados quando pensamos a noção de Ditadura.
PORTAL RSN – Temos que comemorar o Golpe Militar de 31 de março de 1964?
(Márcia da Silva) De forma alguma esta é uma data para comemorações. Para ser o mais simplória possível nos exemplos e facilitar a compreensão do tema, é como se comemorássemos a morte de pessoas somente pela sua condição sócio profissional (camponeses, sindicalistas, professores, líderes rurais e religiosos, padres, advogados, ambientalistas, artistas e outros) ou se comemorássemos a morte de mulheres porque são mulheres ou de gays porque são gays ou de corinthianos porque são corinthianos, ou se comemorássemos a morte de pessoas por sua opção por um momento político diferente para o seu país, no qual pudessem votar, escolher seus representantes, expor suas opiniões.
Comemorar o dia de hoje significa aceitar e compartilhar a eliminação (morte ou exílio) de cidadãos pelo simples fato de conceberem ideias e concepções contrárias à ditadura militar.
PORTAL RSN – Por que existe uma tentativa de mudar a narrativa da história? Que momento é esse que estamos vivendo no Brasil?
(Márcia da Silva) A tentativa de mudar a história posta, tem sido uma preocupação de parte da historiografia brasileira (e mundial), mas no sentido de questionar a sempre história dos vencedores e não de legitimá-la ainda mais, como se quer agora, neste momento de construção de novas ideologias no Brasil. Em termos de legalidade, apesar de geógrafa política, não cabe aqui adentrar nas disposições legais sobre o tema, ou seja, naquelas que conferem ou não legalidade (e não legitimidade) a esta inversão de cientificidades comprovadas.
Para responder sua pergunta, então, enumero alguns elementos do momento atual do sistema político brasileiro que tem permitido ou tentado permitir a inversão de valores em relação ao momento histórico denominado de Ditadura Militar no Brasil. Destaco, ainda, que há também esta tentativa para outras questões, como os movimentos de esquerda, marxismo, fascismo, nazismo, família, universidade, escola, armamentismo, legítima defesa, bandido bom é bandido morto, etc:
a) A militarização dos aparelhos de Estado no sentido do aumento da presença militar em órgãos e funções tradicionalmente ocupadas por civis, em especial Ministros e secretários de primeiro escalão, responsáveis por pastas que influenciam não somente o que fazer, mas o como fazer, a forma de pensar e de quem deve mandar ou de quem deve obedecer
b) A tentativa de inserção de valores militares disseminados em diversos órgãos estatais para que seu funcionamento se assemelhe à normas dos quartéis, vide a expansão de escolas militares, a valorização da masculinização dos oficiais de quartéis, dentre outros.
c) No campo das ideias, parece-me que há muita semelhança à Doutrina de Segurança Nacional (DSN) concebida e consolidada na ditadura recente, com destaque para as questões de geopolítica de aproximação com os EUA, da indicação de que poderá haver o uso das forças armadas junto à Venezuela, da aproximação de Israel, da indicação de fechamento da embaixada brasileira em Jerusalém, dentre outros. Ainda há que se destacar, no campo das ideias, as interpretações conservadoras de patriotismo e de civismo, por intermédio do patrocínio de publicações e de festividades que exaltam esses perfis, incluindo-se as comemorações ao Golpe de 1964.
d) A militarização – entenda-se o uso de armas e da força/coerção como sinônimo de segurança, campanha comandada pelo presidente Jair Bolsonaro e por muitos de seus eleitores e defensores, com defesa não somente da posse, mas do porte de armas por civis.
e) A desqualificação, quando de temas de seu interesse, do poder judiciário e da representação do Supremo Tribunal Federal (STF).
Outros pontos poderiam ser citados e analisados, mas como exemplos de sustentáculos recentes da mudança de narrativas sobre o significado do Golpe Militar de 1964 e de suas consequências penso ser um começo importante para reflexão.
Esses e outros movimentos têm reificado o papel do que o atual governo federal compreende e busca disseminar como Regime Militar e não como Ditadura Militar, explorando ideias equivocadas como se tivessem sido produzidas em um tempo-espaço de bonança, segurança, paz, crescimento econômico, Brasil acima de tudo e Deus acima de todos para todos. E definitivamente não foi isso que aconteceu.
A reversão dessas narrativas deve ser propiciada não somente com a proibição moral e valorativa de comemoração ao Golpe Militar de 1964, no dia de hoje, mas no aniquilamento às suas ideologias, representantes de uma forma de pensar e de agir que cessou vidas e calou vozes, todos os dias do ano. Um viva à democracia, sempre!