22/08/2023
Cotidiano

Abuso sexual na infância e os reflexos na vida adulta: a ferida invisível

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O serviço telefônico Disque 100, mantido pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, registrou, entre 2003 e março de 2011, 52 mil denúncias de violência sexual (abuso e exploração comercial) contra crianças e adolescentes de todo o país. Oito em cada 10 vítimas são meninas. Guarapuava e municípios da região se incluem nessa estatística. O tema foi pauta de uma aula num dos cursos superiores da cidade provocando o relato de dramas que se somam as estatísticas. 

A cada dia, 129 casos de violência psicológica e física, incluindo a sexual, e negligência contra crianças e adolescentes são reportados, em média, ao Disque Denúncia. Isso quer dizer que, a cada hora, cinco casos de violência contra meninas e meninos são registrados no País. Esse quadro pode ser ainda mais grave se levado em consideração que muitos desses crimes nunca chegam a ser denunciados. 

Abusado sexualmente pelo próprio irmão quando tinha apenas 7 anos de idade, o guarapuavano E.C.F, 27 anos, convive com a “ferida sempre aberta” da dor, da vergonha, do asco. “Uma vida de sofrimento. Cada vez que me olho no espelho tenho nojo de mim, e me pergunto como permiti. Finjo que estou bem para agradar aos outros, exatamente como fazia para não desagradar meu irmão, que me batia muito durante o dia e me violentava à noite”. O abuso durou até seus 11 anos. De lá para cá foram três tentativas de suicídio.

“As agressões físicas, e a sexual é uma delas, comprometem a formação da personalidade e provocam danos irreversíveis. A violência nunca é justificada”, diz a psicóloga Maria Hortense Mendes. Entre os depoimentos colhidos em Guarapuava por pesquisadores que precisam manter suas identidades e de seus pacientes em sigilo, histórias de dor.

Era um dia de muito frio em julho de 1998 quando F.C.K, hoje com 24 anos (6 na época), se aconchegou inocentemente no colo do tio, 29 anos, irmão de sua mãe, para se proteger do vento. Foi neste momento, sem que ninguém percebesse, viu a sua infância sendo destruída. As marcas das inúmeras violações que sofreu, carregará para toda a vida. “Não consigo ter relacionamento com ninguém. Basta um homem se aproximar e já penso que irá me fazer mal. Sinto o cheiro dele e sinto vontade de vomitar. Queria tanto arrancar isso de mim, mas não consigo. Foram cinco anos em profundo sofrimento. Toda vez que ele vinha nos visitar nas férias tinha febre, chorava o tempo todo e meus pais nunca perceberam. Como eu iria contar? Ele era o tio que trazia presentes e jogava bola com meus irmãos. O queridinho da família, prá mim sempre foi um monstro”. O tio faleceu no ano passado com câncer de próstata.

Para M.F, 32 anos, muitas de suas atitudes atuais são reflexos de tudo o que passou na infância. “Sou agressiva na maior parte das vezes. Estou sempre na defensiva e pronta para atacar. Se não tomar os remédios entro em surto. Eu só queria achar uma forma de me vingar”. Ela conta que, quando tinha 11 anos foi abordada por um homem elegante na rua que pediu uma informação. Ela estava em frente à escola. Ele insistiu para que ela o ajudasse a encontrar o local que procurava justificando que era de fora. “Entrei no carro e assim que começou a se distanciar e passar a mão nas minhas coxas, comecei a gritar. Tudo em vão”. M.F foi levada para um lugar afastado, próximo ao Jordão onde foi violentada repetidas vezes até desmaiar. “Fui encontrada por uma agricultora, uma senhora muito doce, um anjo que perdi há 5 anos. Foi minha amiga desde aquele dia horrível. Me acolheu, cuidou de mim e me levou aos meus pais que nunca prestaram queixa, por medo. Destruiu minha vida e de meus pais”.

Muitos adultos, vítimas de maus-tratos, podem estar repetindo padrões da infância. “Encontramos muitas vezes pessoas com padrões de comportamentos dos quais não conseguimos compreender, entre eles a agressividade ou seu oposto, pessoas que necessitam agradar em excesso. Esses comportamentos, como outros, podem ser resultado da violência na infância e da dor e da mágoa não resolvidas. Essa criança impotente e ferida pode ainda se transformar no adulto agressor”, analisa Maria Hortense.

O Brasil celebra em 18 de maio o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.  A data foi escolhida em virtude de um crime ocorrido em Vitória (ES), no dia 18 de maio de 1973. Aracelli Cabrera Sanches Crespo, de nove anos, foi violentamente assassinada, e seu corpo foi encontrado seis dias depois, completamente desfigurado e com sinais de abuso sexual. Os autores do crime nunca foram responsabilizados, por serem filhos de pessoas influentes da cidade.

As ligações podem ser feitas de forma anônima, também pelo telefone dos direitos humanos 100 e pelo disque denúncia 181.

Cristina Esteche

Jornalista

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