22/08/2023
Guarapuava

Dor de dente na explosão máxima

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Eu busco a poesia em lugares estranhos, feios, perigosos.
Encontro versos na mais pura insalubridade, nas vertigens.
Não me recuso em conhecer a fedentina dos becos e das feridas.
Eu já encontrei poemas nos olhares, nas dores, nos gozos loucos.
Também já fiz versos nas camas das putas e das adúlteras.
Vi poemas se materializando no sofrimento dos catadores de lixo.
Estrofes sujas se compuseram, por si só, na morte da velha cafetina.

Eu busco me inserir em muitos contextos para fazer poesia.
O pronto, o pragmático e o certinho, não me interessam.
Prefiro mergulhar pelos lados espalhafatosos da vida.
Em cada labirinto, eu vejo a possibilidade pura da explosão máxima.
Mesmo que não seja em abundância, a vida pulsa na loucura.
Em cada palavra escrita, a montagem de um tapete rústico.
São retalhos que como mágica se encaixam e resplandecem.
O travesti desdentado das ruas frias, também é poesia pulsante…

Traficantes de classe média são fragmentos de versos malfeitos.
Nos donos das favelas, eu vejo poemas prontos e belos.
Já vi da morte, nascer vicissitude que se assomou à existência.
No parto malfeito, dentro de um barraco, eu vi a poesia da vida num choro.
No sacolejar de uma cadeira de rodas pela rua de terra, eu vi sorrisos e sorri também.
Gargalhadas em meio à poeira e ao esgoto a céu aberto torna-se pureza.
A esperança pode ser só um pretexto para nada fazer. É preciso verdade.
Na luta diária pela sobrevivência, eu encontro histórias prontas e as transcrevo.
Quando um menino usa o uniforme do pai que é lixeiro, eu choro de emoção.

Não acredito em essência que brota de solo adubado e combatido com veneno.
Para mim, a semente boa precisa germinar nos piores solos, em condições precárias.
Nesta brota, há vida, há paixão, há poesia mais que pura. Eu existo e vivo aí.
Na brutalidade do pedreiro, há a candura da edificação, da proteção.
Por isso, eu me recuso em desprezar a poesia que nasce de quase nada.
Gosto de perceber que ao meu redor há o clamor de muitas vozes.
Já inventei mil maneiras para ignorar o óbvio e me senti muito mais burro.
Sou esta mistura de elementos, cheiros e condições e me deixo ser, ficar.
Minha existência é uma constante busca regada à inquietação.
Falo tudo de uma vez. Odeio os rodeios desnecessários e idiotas.

Um café fraco e sem açúcar também pode ser bálsamo. Sonhos.
No gole de pinga de garrafa de plástico, há essência e néctar que se transfiguram.
Quando a droga é inalada, milhões de cores se formam nas mentes.
Criam-se céus e infernos e eles se comunicam como numa rede.
Assim, a poesia se alimenta numa antropofagia estranha e louca.
Muitos pensam que as palavras são doenças que se proliferam. Coitados!
Na sujeira dos barracos, a poesia cria resistência e se concretiza. Ergue-se.
Poesia é bactéria imortal a infectar a todos à sua volta, mesmo que não saibam.
Muito além dos templos, os poemas se traduzem em cânticos sublimes.
Sem explicação alguma, muitos se embevecem de versos para suportar o agora.
Ai do miserável que não cantar ou declamar para espantar o frio…

Encaro todas as manhãs como se fossem as últimas da minha vida.
Bem da verdade, neste morrer cotidiano, eu encontro a verdadeira graça.
Deixo os dogmas, os ritos para quem vive condicionado a eles; escondido.
Sou a favor de derrubar muros, de arrebentar paredes e de abrir espaço.
A liberdade deve estar estampada no rosto de cada um, sempre.
Sou capaz de deixar tudo de lado, para que a poesia sobressaia.
No fundo, eu sou esta coisa amórfica e que se integra a quase tudo.
Deixo escorrer a areia pelos vãos dos meus dedos e vejo luzes refletidas nos cristais.
Quando fico de cabeça para baixo, a ampulheta do tempo se refaz em mim.
Sangue, suor e esperma regam o físico e o imaginário de todos, sem exceção.
Tateio o barro da favela fétida e ouço gemidos de gozo e de dor de dente.
Quando meu sapato furado fica atolado, eu percebo que também sou poesia.

*Jossan Karsten é jornalista, escritor e poeta. Mora em Guarpuava e é a simplicidade em pessoa. Quando escreve, desafia, provoca, acalma, questiona e responde.

Cristina Esteche

Jornalista

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