22/08/2023
Blog da Cris Brasil

Entre o apocalipse e a novela!

A comoção recente em torno do final da reprise de 'Vale Tudo',  e o que se seguiu, serve como um termômetro brutal de nossas prioridades coletivas

Apocalipse (Imagem: reprodução/Freepik)

Não é novidade que o Brasil vive um momento de encruzilhada. Acompanhamos um noticiário que, a cada dia, parece mais com um roteiro distópico. São crises políticas que não cessam, indicadores econômicos instáveis e uma polarização social que beira o colapso. No entanto, o que realmente mobiliza a atenção nacional, a ponto de ofuscar o turbilhão da realidade? A resposta, muitas vezes, está na tela da televisão: a eterna e viciante novela das nove.

A comoção recente em torno do final da remake de Vale Tudo’, e o que se seguiu, serve como um termômetro brutal de nossas prioridades coletivas. O frenesi alcançou o ápice quando a pergunta que ecoa por décadas voltou ao ar. Ou seja: “Quem Matou Odete Roitman?” Neste momento nem mesmo a autora sabe. Assisti uma entrevista com Manuela Dias e ela mesmo confessa que gravou 10 finais diferentes.

Em meio a essa incógnita que domina o imaginário popular, é preciso reconhecer o brilho estratégico da Rede Globo. Em meio à histeria da reta final de Vale Tudo’, a emissora teve uma sacada de gênio ao transformar a nostalgia em um fenômeno de marketing. Tipo de oportunidade para a nova produção.

Ao resgatar a icônica pergunta sobre o mistério central de ‘Vale Tudo (1988),’ uma novela sobre ambição, dramas, traições, a Globo usou essa ponte promocional para guiar a audiência à nova trama. Ela não apenas celebrou o fim de um sucesso; ela soube ligar a energia da audiência ao maior mistério da teledramaturgia nacional.

A emissora demonstrou uma compreensão profunda da psique brasileira. Ela não vende apenas entretenimento. Vende distração qualificada, um escape que faz o telespectador trocar a angústia da notícia real pelo prazer inofensivo da especulação ficcional. É um golpe de mestre: canaliza a emoção do passado (Vale Tudo) e, em seguida, direciona-a para o futuro da programação.

A PREFERÊNCIA PELO ‘QUEM MATOU’?

O que essa comoção midiática revela sobre o Brasil? Enquanto o país lida com a complexidade de reformar as estruturas, resolver a crise do custo de vida ou debater questões cruciais para a democracia, a sociedade, em grande parte, prefere se debruçar sobre a especulação da ficção, sob a pergunta cruel e antiética: “vale a pena ser honesto”?

Essa preferência por Quem Matou Odete Roitman?” em vez de, por exemplo, “Quem Desmantelou Nossas Políticas Públicas?” ou O Que Faremos para Estancar a Crise?” é um sintoma alarmante. Não se trata de demonizar o entretenimento. A novela tem um papel cultural e social inegável. O problema reside na proporção dessa mobilização.

O frenesi em torno da ficção é um reflexo de uma sociedade que, cansada e descrente da política e da resolução de problemas complexos, busca refúgio em narrativas mais palatáveis, com inícios, meios e fins definidos. Ainda que sejam apenas na tela.

A Globo, com seu marketing perspicaz, não inventou essa fuga; ela apenas a capitalizou. E enquanto a audiência se engaja no mistério de um assassinato fictício, o país continua refém dos mistérios e problemas muito reais, que demandam nossa atenção e, acima de tudo, nossa ação crítica.

ENTÃO ….

Essa busca incessante por escapismo é uma válvula de segurança ou um sinal de que estamos desistindo de enfrentar a realidade?

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Cristina Esteche

Jornalista

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