22/08/2023
Cotidiano

Entrevista: professor comenta Carta Aberta sobre os “200 anos”

imagem-15227

Guarapuava – A carta aberta “O que comemoramos?” divulgada pelo Departamento de História da Unicentro e publicada na última edição da TRIBUNA tem recebido vários comentários de leitores, enviados por e-mail a redação do jornal. A grande maioria deles destaca a importância da perspectiva adotada pelo texto, que critica a ênfase da comemoração em torno de “heróis” brancos, membros da aristocracia guarapuavana.

A opinião que vem a calhar no momento em que a gestão municipal tenta “vender” a idéia de que Guarapuava comemorará 200 anos em 2010 – oficialmente a cidade foi fundada em 1819, tendo, portanto, 190 anos – elegendo como símbolo principal da comemoração o português Diogo Pinto de Azevedo Portugal, um dos líderes da expedição enviada pela Coroa Portuguesa. Ao ressaltar o papel das pessoas tidas como “primeiros povoadores”, a administração municipal ignora que já havia uma grande quantidade de pessoas habitando o espaço, principalmente indígenas, e o papel de outros, de ascendência não aristocrática, para o desenvolvimento local.

Para comentar o assunto, a TRIBUNA conversou com o professor do Departamento de História da Unicentro, Francisco Ferreira Júnior (foto), mestre pela Universidade Federal Fluminense, redator da já citada carta. O professor tem se concentrado em pesquisas sobre degredados em Guarapuava, justamente a face esquecida da “gloriosa” história guarapuavana.

TRIBUNA: Como nasceu a idéia da carta? Partiu de você ou do departamento?

FRANCISCO FERREIRA JÚNIOR: Em uma reunião do departamento, há cerca de 15 dias, foi manifestada a importância de nos posicionarmos de alguma forma com relação a comemoração. Recebemos também o pedido da comissão que organiza o evento para cedêssemos espaço a eles para abordarem o tema, aqui no departamento. No entanto eles já vieram com idéias prontas sobre o que ia acontecer. De maneira geral, os professores do departamento acreditaram que seria importante que nos manifestássemos, principalmente enfatizando o ponto de vista acadêmico, a noção que temos da comemoração enquanto historiadores e pesquisadores. Eu me propus a redigir a carta, que passou por uma reunião, visando ao aval do departamento, seguido pela divulgação do texto.

T: Então, a comissão que organiza a comemoração dos “200 anos” procurou vocês?

FFJ: A comissão procurou o Departamento de História, mas a gente entende, conforme explicado na carta, não ser nossa função tratar de assuntos comemorativos dessa maneira. Além disso, quando esse tipo de assunto chega aos historiadores – pesquisadores que tratam a história de maneira científica – as decisões já foram tomadas. A comissão já havia definido datas e quem ia ser homenageado. Mesmo que tenhamos sido procurados, a nossa opinião não ia alterar muita coisa. Considero que eles tenham nos procurado tarde demais para perguntar nossa opinião. Também não existe nenhuma pessoa do Departamento de História nos representando na comissão.

T: Essa comissão tem sido encabeçada por memorialistas.

FFJ: Isso é um conceito delicado. Existem alguns ex-professores do Departamento de História, autores de pesquisas importantes, dedicadas a preservação da memória de Guarapuava. Respeitamos o trabalho deles, relacionado a cidade, inclusive, algumas pesquisas se enquadrariam no perfil acadêmico. Agora quando chega a esse ponto de buscas datas e nomes importantes, temos que atribuir esse título, de memorialistas. São pessoas que se dedicam a conhecer o passado de forma diferente do conhecimento acadêmico, exaltando inícios, origens e heróis. Também pelo que nos foi passado, nessa comissão existem pessoas que tem interesses públicos e, no entanto, não possuem nenhum conhecimento de história, que não trabalham dentro da área. Isso demonstra que parece haver um interesse mais político, do que uma vontade de conhecer academicamente o passado.

T: Na sua dissertação, você trabalha com o tema degredados. Seu interesse partiu justamente da necessidade de abordar personagens esquecidos da história guarapuavana – como escravos, indígenas e prostitutas – conforme expresso na carta?

FFJ: Logo que comecei a estudar a história, uma das áreas que eu considerava mais fascinantes da Teoria da História era justamente aquela que começava a ser discutida a partir do século XX e mostrava que a história é feita por todos. Não existe o porquê de você se dedicar a fazer apenas a “história dos vencedores”, como se apenas da vontade deles tivesse surgido a história. Desde que eu me entendi como pesquisador, de uma coisa eu sempre tive certeza: gostaria de pesquisar as pessoas que não pareciam na história, os excluídos do processo e que foram tão importantes quanto qualquer outro grande nome. Então, o tema degredados surgiu justamente do interesse pela “história dos excluídos”, pessoas que têm sido retiradas do processo histórico. Esse interesse permeia algumas pesquisas históricas recentes e não somente a minha.

T: Sua última pesquisa aborda a vida do [degredado] Candido Ribeiro. Gostaria que você falasse mais sobre isso.

FFJ: É o meu projeto de doutorado, que pretende tratar a trajetória do condenado a degredo, José Maria Candido Ribeiro, um dos personagens que estudei no meu mestrado. Ele teve uma série de problemas com a justiça do século XIX, por falsificar moeda na Bahia e ter conseguido, através de algumas estratégias, podemos dizer, burlar a justiça. A pena, a que ele havia sido condenado primeiramente, era de trabalhos forçados, chamados de “galés perpétuos”. Posteriormente, ela foi modificada para degredo em Guarapuava. Ele ficou alguns anos aqui, a partir de 1859, sendo novamente acusado de falsificar moeda. Por fim, Candido Ribeiro acaba se suicidando em Ponta Grossa em 1861. Pretendo utilizar esse personagem para estudar a Justiça no século XIX, que era bastante flexível para determinadas circunstâncias. O objetivo é partir de um personagem para explicar uma realidade social maior dentro de um período de tempo determinado.

Foto: Nagel Coelho/Rede Sul

Cristina Esteche

Jornalista

Relacionadas

A missão da RSN é produzir informações e análises jornalísticas com credibilidade, transparência, qualidade e rapidez, seguindo princípios editoriais de independência, senso crítico, pluralismo e apartidarismo. Além disso, busca contribuir para fortalecer a democracia e conscientizar a cidadania.